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HISTÓRIAS DA BOTICA (34)



                A essência do amor…
                A essência do amor…




               título desta história parece plagiar  respeitáveis cavalheiros, antigos conquistado-  situação foi rapidamente explicada à esposa
               um dos cartazes, que fazem suces-  res de mundos, se sujeitavam a tais contrarie-  – angustiada – da melhor forma possível. Com
         O  so nas bancas e quiosques, de revis-  dades, por parte de companheiras mais ou me-  um quase tranquilizador: “Não se preocupe,
         tas de “gente da moda”, com grande tiragem  nos dominadoras. A minha motivação é, antes  acrescentou, vamos fazer tudo o que for pos-
         e sucesso no nosso país, cheias de romances  de mais, egoísta pois muitas vezes me assalta  sível. As coisas hão-de correr melhor…”
         e conselhos sexuais, mais                                                             Durante a noite, ao
         ou menos explícitos. É                                                              contrário, a situação clí-
         possível, sem grande difi-                                                           nica agravou-se. O pa-
         culdade, observa-las, bem                                                           ciente continuou instá-
         seguras, nas mãos de se-                                                            vel e acabou por falecer
         nhoras idosas de respei-                                                            ás primeiras horas dessa
         tabilidade inquestioná-                                                             madrugada, apesar de
         vel, que gostam de saber                                                            tudo o que havia sido fei-
         o desfecho de telenovelas                                                           to para o manter vivo. De
         intermináveis, ou no míni-                                                          manhã o mesmo médico
         mo, esta ou aquela intimi-                                                          mandou chamar a mulher
         dade do divórcio de uma                                                             e relatou-lhe o sucedido
         qualquer actriz de reputa-                                                          (…é sempre das partes
         da fama. Mas nada disso,                                                            piores que tem a pro-
         nem eu – como a esta al-                                                            fissão, acreditem…). A
         tura já saberá o leitor assí-                                                       dor, estampada na face
         duo – tenho arte para tan-                                                          da mulher, era imen-
         to sucesso comercial, nem                                                           sa, pois a dor tem – ao
         é isso o que me interessa.                                                          contrário do que muitos
         Interessam-me muito mais                                                            acreditam – existência fí-
         as intrincâncias profundas                                                          sica, tal como a alegria,
         da relação entre as pesso-                                                          a beleza e todos os senti-
         as, neste caso entre ho-                                                            mentos próprios dos seres
         mens e mulheres. Ora, a                                                             vivos. Esse médico tam-
         este propósito, é habitual                                                          bém não se sentia muito
         dizer-se que existe uma                                                             bem. Ficou, por momen-
         mulher atrás de cada ho-                                                            tos, perdido, no vazio da
         mem. Nas consultas e na                                                             noite em claro e da vida
         restante prática médica                                                             perdida. Nesse dia, na
         este aspecto é por demais                                                           face, triste daquela mu-
         evidente, independente-                                                             lher viu amor, um amor
         mente da idade, ou status                                                           profundo, mais forte que
         sócio - cultural. Atente o                                                          a pena ou o silêncio do
         leitor ao seguinte diálogo,                                                         inesperado, de um lugar
         rigorosamente verídico:                                                             por preencher, de quem
           - Então de que se queixa                                                          antes tudo significava…
         Sr. João? - Pergunta o in-                                                          Deve ser este o verda-
         cauto clínico. Responde a esposa pressurosa  uma inquietante questão – Será que também  deiro amor…acreditou intimamente.
         – Ó Sr. Doutor ele nunca se queixa de nada,  me vai acontecer isto? Será que também vou   Durante dias tentou tirar a bissectriz correc-
         mas eu sei que está muito mal...E continua  proceder assim?           ta e justa ao amor, entre a tragédia profunda
         em tom paternalista – O meu marido tem tido   Contudo, recentemente, uma outra histó-  – que por vezes é a vida – e a relação quase ri-
         umas dores no peito, muito fortes, que não o  ria menos comum ajudou-me a formar uma  dícula, que pode existir entre duas pessoas que
         deixam fazer nada… – Aí os esposos entram  opinião. É a história de outro casal em que o  vivem juntas. Talvez, algures entre o trágico e
         em diálogo directo, como se estivessem sós  marido, homem na casa dos 30 foi acometi-  o cómico haja um meio-termo, que cada casal
         no consultório – Ó mulher mas eu estou bem,  do de uma súbita falta de ar e internado numa  deverá encontrar, em que a personalidade de
         ainda ontem cavei a vinha toda – quase gritou  cama de cuidados intensivos. Tratava-se de um  cada um seja respeitada – concluiu esse médi-
         ele. Tu não sabes nada, ó Sr. Doutor, por obsé-  homem saudável sem antecedentes cardíacos  co, por quem adquiri merecido respeito.
         quio, veja se o trata que ele está muito doente  conhecidos, ou quaisquer outros de reconhe-  O amor, penso eu, cresce sobretudo da par-
         – retorquiu, finalmente, ela. Chega a ser exas-  cida gravidade. A situação clínica teve uma  tilha de emoções de uma vida, muitas vezes
         perante, para o clínico assistente, de modo a  evolução galopante. O paciente acabou, algu-  cheia de dificuldades, de toda a ordem, que
         que muitos médicos, pura e simplesmente, im-  mas horas após a admissão, por ser ventilado  se guardam na memória conjunta de uma
         pedem a presença do marido e da mulher, em  artificialmente. Efectuaram-se os exames pos-  viver honestamente partilhado. Na doença,
         simultâneo, no gabinete de consulta…  síveis. No ecocardiograma – exame utilizado  situação de grande desafio emocional, essa
           Meditei muito sobre estas discussões, sobre-  para ver o coração – havia um espessamento  relação sobressai, eventualmente nas suas fa-
         tudo não percebia o ar apatetado, com que  associado a uma miocardiopatia congénita. A  cetas melhores ou piores, reflectindo a relação

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