Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (34)
A essência do amor…
A essência do amor…
título desta história parece plagiar respeitáveis cavalheiros, antigos conquistado- situação foi rapidamente explicada à esposa
um dos cartazes, que fazem suces- res de mundos, se sujeitavam a tais contrarie- – angustiada – da melhor forma possível. Com
O so nas bancas e quiosques, de revis- dades, por parte de companheiras mais ou me- um quase tranquilizador: “Não se preocupe,
tas de “gente da moda”, com grande tiragem nos dominadoras. A minha motivação é, antes acrescentou, vamos fazer tudo o que for pos-
e sucesso no nosso país, cheias de romances de mais, egoísta pois muitas vezes me assalta sível. As coisas hão-de correr melhor…”
e conselhos sexuais, mais Durante a noite, ao
ou menos explícitos. É contrário, a situação clí-
possível, sem grande difi- nica agravou-se. O pa-
culdade, observa-las, bem ciente continuou instá-
seguras, nas mãos de se- vel e acabou por falecer
nhoras idosas de respei- ás primeiras horas dessa
tabilidade inquestioná- madrugada, apesar de
vel, que gostam de saber tudo o que havia sido fei-
o desfecho de telenovelas to para o manter vivo. De
intermináveis, ou no míni- manhã o mesmo médico
mo, esta ou aquela intimi- mandou chamar a mulher
dade do divórcio de uma e relatou-lhe o sucedido
qualquer actriz de reputa- (…é sempre das partes
da fama. Mas nada disso, piores que tem a pro-
nem eu – como a esta al- fissão, acreditem…). A
tura já saberá o leitor assí- dor, estampada na face
duo – tenho arte para tan- da mulher, era imen-
to sucesso comercial, nem sa, pois a dor tem – ao
é isso o que me interessa. contrário do que muitos
Interessam-me muito mais acreditam – existência fí-
as intrincâncias profundas sica, tal como a alegria,
da relação entre as pesso- a beleza e todos os senti-
as, neste caso entre ho- mentos próprios dos seres
mens e mulheres. Ora, a vivos. Esse médico tam-
este propósito, é habitual bém não se sentia muito
dizer-se que existe uma bem. Ficou, por momen-
mulher atrás de cada ho- tos, perdido, no vazio da
mem. Nas consultas e na noite em claro e da vida
restante prática médica perdida. Nesse dia, na
este aspecto é por demais face, triste daquela mu-
evidente, independente- lher viu amor, um amor
mente da idade, ou status profundo, mais forte que
sócio - cultural. Atente o a pena ou o silêncio do
leitor ao seguinte diálogo, inesperado, de um lugar
rigorosamente verídico: por preencher, de quem
- Então de que se queixa antes tudo significava…
Sr. João? - Pergunta o in- Deve ser este o verda-
cauto clínico. Responde a esposa pressurosa uma inquietante questão – Será que também deiro amor…acreditou intimamente.
– Ó Sr. Doutor ele nunca se queixa de nada, me vai acontecer isto? Será que também vou Durante dias tentou tirar a bissectriz correc-
mas eu sei que está muito mal...E continua proceder assim? ta e justa ao amor, entre a tragédia profunda
em tom paternalista – O meu marido tem tido Contudo, recentemente, uma outra histó- – que por vezes é a vida – e a relação quase ri-
umas dores no peito, muito fortes, que não o ria menos comum ajudou-me a formar uma dícula, que pode existir entre duas pessoas que
deixam fazer nada… – Aí os esposos entram opinião. É a história de outro casal em que o vivem juntas. Talvez, algures entre o trágico e
em diálogo directo, como se estivessem sós marido, homem na casa dos 30 foi acometi- o cómico haja um meio-termo, que cada casal
no consultório – Ó mulher mas eu estou bem, do de uma súbita falta de ar e internado numa deverá encontrar, em que a personalidade de
ainda ontem cavei a vinha toda – quase gritou cama de cuidados intensivos. Tratava-se de um cada um seja respeitada – concluiu esse médi-
ele. Tu não sabes nada, ó Sr. Doutor, por obsé- homem saudável sem antecedentes cardíacos co, por quem adquiri merecido respeito.
quio, veja se o trata que ele está muito doente conhecidos, ou quaisquer outros de reconhe- O amor, penso eu, cresce sobretudo da par-
– retorquiu, finalmente, ela. Chega a ser exas- cida gravidade. A situação clínica teve uma tilha de emoções de uma vida, muitas vezes
perante, para o clínico assistente, de modo a evolução galopante. O paciente acabou, algu- cheia de dificuldades, de toda a ordem, que
que muitos médicos, pura e simplesmente, im- mas horas após a admissão, por ser ventilado se guardam na memória conjunta de uma
pedem a presença do marido e da mulher, em artificialmente. Efectuaram-se os exames pos- viver honestamente partilhado. Na doença,
simultâneo, no gabinete de consulta… síveis. No ecocardiograma – exame utilizado situação de grande desafio emocional, essa
Meditei muito sobre estas discussões, sobre- para ver o coração – havia um espessamento relação sobressai, eventualmente nas suas fa-
tudo não percebia o ar apatetado, com que associado a uma miocardiopatia congénita. A cetas melhores ou piores, reflectindo a relação
30 ABRIL 2004 U REVISTA DA ARMADA