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ESTÓRIAS – 6
Um desencalhe muito curioso
Um desencalhe muito curioso
m 1956, professor da Escola Naval havia Como já tinham falhado duas tentativas e não Tomei então as seguintes decisões:
três anos e terminada a pós-graduação em havia tempo a perder, resolvi ir a bordo do na- (a) Mandar sondar rápida e aleatoriamente as
ELondres, fui nomeado comandante do na- vio encalhado para colher mais informações. O águas a bombordo do navio encalhado.
vio-patrulha “Faial”, ao serviço da fiscalização imediato já tinha, por sua iniciativa, preparado (b) Pedir ao comandante do “Secil” que pas-
da costa na Zona Centro. o gasolina e, pouco depois, estava a bordo do sasse o nosso cabo de reboque à proa do navio,
O “Faial” era um navio a vapor, forte, lento, cargueiro onde, enquanto falava com o coman- o que fez com relutância dizendo que eu ia
de dois hélices e apreciável capacidade de ma- dante, me apercebi de que a proa do navio os- partir o navio. Pensei que ele talvez tivesse ra-
nobra se lhe conhecêssemos o jei- zão, mas se não o desencalhasse
to. Tal como o “Terceira”, adiante rapidamente, ele partir-se-ia com
mencionado, fizera a tarimba no o baixar da maré.
Mar dos Açores, entre as ilhas do (c) Informar o comandante do
Pico e do Faial, onde servi, como “Terceira” do que ia fazer e pedir-
guarda-marinha, durante a Guerra -lhe que passasse novamente um
de 1939-45. cabo à popa do navio encalhado,
O patrulha tinha uma boa guar- mas sem forçar muito e apenas
nição, um excelente chefe do ser- para evitar que a popa, ao rodar
viço de máquinas e como ime- o navio encalhado, fosse para
diato o guarda-marinha Almeida cima das rochas ou, o que é o
Carvalho, do curso do almirante mesmo, para tentar que o navio
Fuzeta da Ponte, ambos meus an- rodasse não pela meia-nau mas
tigos alunos. sobre a popa.
Normalmente, estávamos uma (d) Esclarecer o imediato so-
semana de serviço e outra de folga bre a manobra, recomendando
(em que eu ia dar aulas na Esco- o maior cuidado em não deixar
la Naval), alternando com o N.P. partir o cabo passado da nossa
“Terceira”. Vários almirantes já na popa à proa do navio encalhado,
reserva se lembrarão do “Faial” e pois tínhamos os minutos conta-
dos seus “estágios” voluntários dos: era rondar e afrouxar. Não
no navio aos fins-de-semana, podia falhar!
com autorização do M.G.A. (e) Colocar o nosso navio na
Num bonito dia de Verão, es- posição adequada, junto à costa,
távamos de regresso a Lisboa, fazendo um ângulo de mais de
com o “Terceira” já em serviço, 45º com o navio encalhado.
quando recebemos um “rádio” Estávamos em condições de
do Major-General da Armada começar a rondar o cabo até
(CEMA) para seguirmos para Pe- que, com grande satisfação e al-
niche a fim de prestar assistência guma surpresa, o “Secil” come-
ao cargueiro “Secil”, encalhado, çou a rodar sobre si mesmo até
devido ao nevoeiro, a norte do tomar uma posição quase parale-
cabo Carvoeiro. la à costa do promontório.
O “Secil” era um navio a motor, Houve um momento de ex-
que pertencia a uma frota de três, pectativa até que deslizou para
utilizados para transportar regularmente cimento cilava leve e imperceptivelmente, o que signi- aquém das rochas e “caiu” na água com
da fábrica do Outão para os silos existentes na ficava que ela não estava assente no fundo: o fragor e levantando uma apreciável mas-
margem norte da foz do Douro (rua do Ouro). navio teria saltado por cima das rochas e estaria sa de água.
Máquinas toda a força avante, rumo Norte! E, assente nelas de meia-nau para ré. A maré tinha já começado a vazar. Tínha-
lembrando o que ensinava aos meus alunos, en- Surgiu-me então uma ideia: rebocar o navio mos ganho a batalha contra as rochas e con-
trei em contacto pela rádio com o comandante “pela proa” com o meu navio quase pelo seu tra o tempo.
do “Secil” perguntando se aceitava a assistência través e fazendo rodar o navio encalhado so- Z
do “Faial” (indispensável para ter direito ao sa- bre si mesmo. Talvez rodando 90º ele “caísse” E. H. Serra Brandão
lário de assistência), ao que respondeu afirma- das rochas. Notas
tivamente pedindo a maior urgência porque a Era uma manobra arriscada. Para o meu navio 1. As autoridades navais calcularam o salário de sal-
maré estava quase cheia e, se vazasse entretanto, porque tínhamos de nos situar numa zona ro- vação de acordo com as regras internacionais e a se-
o navio podia, muito provavelmente alquebrar chosa de fundos muito baixos. Para o navio enca- guradora do “Secil” pagou ao Estado a quantia de 90
e, também, porque o “Terceira” já rebentara dois lhado porque podia alquebrar com o esforço. contos (1956), tendo uma pequena percentagem sido
dividida pela guarnição do “Faial” conforme a legisla-
cabos a tentar rebocá-lo pela popa, como era Faltava um quarto de hora para a maré- ção em vigor.
natural que fizesse. -cheia. Tínhamos, pois, de ser muito rápidos. 2. Curiosamente, 24 anos depois, fui convidado pelo
Chegámos ao local e pedi o ponto da situa- Lá no alto do promontório, no cimo da falésia, Governo para presidente do Conselho de Administração
ção ao comandante do “Terceira”, mais moder- uma multidão de “mirones” observava, com da Companhia de Cimentos Secil, à qual pertencia o na-
vio encalhado. E dizia-me na altura o presidente dos só-
no do que eu, pelo que me competia coordenar curiosidade, as operações. Não podíamos dei- cios dinamarqueses: já desencalhou o “Secil”, veja agora
as operações de salvamento. xar mal a Marinha. se desencalha a “Secil”.
24 JUNHO 2004 U REVISTA DA ARMADA