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A MARINHA DE D. MANUEL (48)



                        À “descoberta” da China
                        À “descoberta” da China



               distante país a que hoje chamamos  instalações para instalar a sua feitoria, e – de  de Albuquerque e que vieram a ser precio-
               de China não era uma ideia clara  acordo com testemunhos posteriores – eram  sos para as decisões posteriores em relação
         O  e definida que fizesse parte do co-  as mesmas que algumas décadas antes já ti-  à China. Soube – por exemplo – que os mer-
         nhecimento geográfico medieval europeu.  nham sido ocupadas por chineses. O teste-  cadores chineses traziam almíscar, cânfora,
         A própria designação não surge antes do sé-  munho que disso temos é indirecto, mas não  ruibarbo (planta medicinal), damascos, ce-
         culo XVI, após a chegada dos portugueses  custa a acreditar que na altura isso tenha sido  tins baixos e colinjam (?), que trocavam por
         à Índia e como resulta-                                                              pimenta – que consu-
         do de vagos contactos                                                                miam em grande quan-
         com notícias e gentes                                                                tidade – e cravo.
         que viviam pela cos-                                                                   Em 1511 os chineses
         ta do Malabar. Existia                                                               que estavam em Ma-
         uma vaga ideia do Ca-                                                                laca colaboraram com
         taio, que resultava dos                                                              Albuquerque na sua
         relatos de Marco Polo                                                                conquista, facultando
         ou de outros viajan-                                                                 embarcações miúdas
         tes e aventureiros do                                                                para o desembarque
         longínquo século XIII,                                                               (Marinha de D. Ma-
         que calcorrearam toda                                                                nuel (40)) e fornecendo
         a Ásia numa altura                                                                   preciosas informações
         em que o absoluto do-                                                                ao capitão português.
         mínio mongol conferia                                                                Tudo apontava para o
         alguma segurança aos                                                                 início de relação frutu-
         intermináveis cami-                                                                  osa que tinha todas as
         nhos do Oriente. Desse                                                               condições para funcio-
         vasto império, iniciado                                                              nar bem: os chineses
         com Genghis Khan, fa-                                                                não eram muçulma-
         ziam parte duas provín-                                                              nos, não disputavam o
         cias mais orientais, que   Painel de laca vermelha lavrada com motivos chineses. Época Ch’ien Lung.  poder no mar, e tinham
         mereceram a designa-                                                                 hábitos de alimentação
         ção europeia de Cataio e Margui, e que cor-  falado, embora seja duvidoso que os portu-  que muito agradavam aos portugueses (co-
         respondem, mais ou menos, à China do nor-  gueses do princípio da era de quinhentos  miam, por exemplo, carne de porco e bebiam
         te e do sul. São as duas partes de um outro  compreendessem bem que gente era essa.  vinho de palma, o que era visto como um
         império que só viria a despontar a partir do  Há, aliás, outros momentos em que os por-  sinal de proximidade civilizacional, num
         ano de 1368, quando os Ming se libertam do  tugueses podem ter contactado directamente  vasto espaço geográfico onde esses dois
         domínio mongol. Mas, a fase em que se dá  com chineses ou, pelo menos, ter notícia de-  produtos eram absolutamente proibidos).
         esta libertação independentista, correspon-  les, mas a primeira indicação clara que refe-  Em Maio de 1513 Jorge Álvares vai num
         de também à quebra do poder dos Khan,  re um encontro concreto está na compilação  junco à China para comerciar e regressa um
         ao recrudescimento da insegurança nas vias  de Alexandro Zorzi dos relatos de anónimos  ano depois com resultados fabulosos, sendo
         terrestres da Ásia, e a um isolamento acen-  italianos que viajaram em 1503/04 com An-  o primeiro português que cruzou essa porta.
         tuado do espaço chinês, que se fechou so-  tónio Saldanha, onde se diz que havia em  Em Abril ou Maio de 1515 são armados três
         bre si próprio. A Europa perde o contacto  Coulão quatro ou cinco homens brancos “e  juncos para uma viagem semelhante, mas,
         com o Extremo Oriente, e os anteriores re-  inquesta terra li chiamamo chims”.  desta vez, vão cerca de 30 portugueses, sob
         latos – já de si pouco rigorosos – evoluíram   Em Setembro de 1509, quando Diogo Lo-  as ordens de Rafael Perestrelo que obteve o
         para divagações fantásticas que se afastam  pes de Sequeira está em Malaca, tentando  lucro astronómico de 15000 cruzados, com
         cada vez mais da realidade concreta do Ex-  obter um acordo pacífico para instalar uma  uma carga relativamente modesta. É claro
         tremo Oriente.                     feitoria portuguesa, tem um amistoso con-  que o eco destes sucessos chegava a Lisboa e
           Quando Vasco da Gama chega à Índia,  tacto com os mercadores chineses que aí se  o rei não estava distraído duma situação que
         em Maio de 1498, ninguém sabe o que é a  encontram (D. Manuel recomendara-lhe que  lhe poderia ser muito proveitosa. Decidiu
         China nem nunca ouviu falar em tal nome.  se informasse sobre eles), ficando muito bem  que era a altura de mandar os seus próprios
         Numa notícia desta viagem, escrita por Giro-  impressionado com o tipo de gente que era  navios à China, e tentar que uma embaixada
         lamo Sernigi em 1499 (ele estava em Lisboa,  e com as potencialidades comerciais que re-  portuguesa fosse recebida pelo imperador.
         à chegada do navio de Nicolau Coelho), há  presentavam. Em frente da cidade havia, ali-  Foi com esse intuito explícito que Fernão Pe-
         uma descrição pormenorizada de Calecut,  ás, uma ilha conhecida por “ilha dos chins”,  res de Andrade, António Lobo Falcão e Jor-
         referindo que, cerca de oitenta anos antes,  onde costumavam ficar fundeados os seus  ge de Mascarenhas integraram a esquadra
         aí iam frequentemente uns navios de grande  juncos no pequeno período em que perma-  de Lopo Soares de Albergaria. Todavia, os
         porte (di quattro arbori) com gentes que po-  neciam na cidade. Rui Araújo – o feitor que  caminhos da China – em termos náuticos e
         derão ser identificadas com os chineses, que  acabou por ficar cativo em Malaca, quando  diplomáticos – estavam ainda muito nebu-
         se sabe terem navegado por todo o Índico até  da retirada precipitada de Lopes de Sequeira  losos, como veremos de seguida.
         cerca de 1430. Cabral esteve em Calecut no  – obteve pormenores importantíssimos so-                  Z
         ano de 1500, com os resultados desastrosos  bre os súbditos do “Celeste Império” (como   J. Semedo de Matos
         que referi anteriormente, mas chegou a ter  se auto-intitulava) que comunicou a Afonso            CFR FZ

         22  JUNHO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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