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A MARINHA DE D. MANUEL (51)
A rendição dos governadores
A rendição dos governadores
opo Soares de Albergaria não devia dando uma esquadra de “dez naos grossas”, ainda, mas que o faria logo que lhe fosse
ter uma maneira de ser muito fácil a 26 ou 27 de Março de 1518 (é frequente ha- possível. Só em Novembro o governador
Lnem muito adaptável aos vulgares ver o desajuste de um dia entre documentos, cessante chegou de Ceilão, e – sabendo que
desalinhos próprios das gentes que anda- parecendo-me que tem a ver com a própria o seu substituto estava em terra (Cochim) –
vam pela Índia há largos meses ou anos. lentidão dos navios e o tempo que permeia desembarcou dando (simbolicamente) ins-
Lembramo-nos como encarou a truções à sua guarda para que não
ideia de vir a ser governador e levasse alabardas, nem o meirinho
como esteve à beira de renunciar a vara, querendo com isto mostrar
ao cargo, em troca de um benefí- que já reconhecia os poderes do ou-
cio concedido pelo rei, sabendo tro. Hoje estes pormenores seriam
nós como foi importante o con- tidos como protocolares e não cau-
selho do Barão do Alvito, que o sariam surpresa, mas os cronistas
convenceu a não aceitar nenhu- descrevem-nos com um sentido
ma troca e embarcar para a Índia. que mostra bem a intenção mútua
A herança de Albuquerque não era e específica de não ferir quaisquer
ligeira e a morte do seu anteces- susceptibilidades. No primeiro en-
sor, antes de se poderem encontrar, contro que tiveram, Lopo Soares
acabou por obviar uma sucessão manifestou desejo de se libertar
sem problemas, que poderiam das responsabilidades do governo
ser semelhantes aos de 1509, no da Índia e, para o efeito, o secretário
final do man dato de D. Francisco Diogo Pereira tinha já preparado o
de Almei da, aumentados pelo am- documento de “entrega e residên-
biente hostil que iria defrontar jun- cia, per apontamentos das fortale-
to dos portugueses e dos poderes zas, armadas, fornições [conteúdos]
locais. Lopo Soares era o agente dos almazens, e decrarando as cou-
de uma nova forma de actuar no sas que estauão de paz e de guer-
Oriente, com uma predominância ra, tudo em muyta ordem”. Só a
do trato comercial, e uma política partir dessa altura Diogo Lopes de
subordinada às influências direc- Sequeira começou a tomar decisões
tas dos investidores. D. Manuel acerca da Índia.
cedeu a esta pressão, talvez por- A 4 de Janeiro (ou 20 de Janeiro se-
que não tivesse escolha, mas não gundo João de Barros) de 1519 par-
há dúvida que lhe agradava muito tiu Lopo Soares de Albergaria para
mais a imagem imperial criada por Lisboa, onde chegou com todos os
Albuquerque. E a inquirição que navios. O rei recebeu-o com as hon-
ordenou em 1517 – levada a cabo ras devidas e autorizou-o a retirar-se
pelo feitor Fernão de Alcáçova para uma propriedade que tinha em
(Marinha de D. Manuel 50) – re- Armada de 1518 de Diogo Lopes de Sequeira. Torres Vedras, não voltando à corte
vela o sentido das hesitações em Livro das Armadas até ao final do reinado do Venturo-
que balançava o rei: satisfazer os so. Que género de homem seria, de
investidores para quem a Índia era apenas entre a despedida no Restelo, o levantar fer- facto, este terceiro governador da Índia no-
um mercado e afirmar-se como senhor do ro e o desaparecer no horizonte), chegando à meado por influência do Barão do Alvito?...
Oriente exercendo um poder que, natural- Índia em Setembro desse mesmo ano. Gaspar Correia não escondeu a sua antipatia
mente, era caro. O envio do feitor podia É interessante observar a forma como por ele, sobretudo pela forma como procu-
resultar directamente de intrigas de corte, foi feita a transmissão do cargo de go- rava desfazer a obra de Albuquerque e, tal-
mas era, sobretudo, um estender do braço vernador porque ela revela uma cautela e vez, pela forma “branda” como lidou com
real, mostrando o ceptro do poder e dizen- um rigor de procedimentos que não tinha alguns poderes orientais, mas não deixa de
do ao governador que não queria ser ape- ocorrido até aí. reconhecer as suas qualidades de homem
nas mais um comprador de pimenta. Julgo Diogo Lopes de Sequeira passou por Goa, nobre, respeitado e honesto. Por várias ve-
que Lopo Soares entendeu bem o que lhe onde imediatamente lhe “offerecerão cou- zes foi chamado à corte, mas sempre se escu-
estava a ser dito e o resto do seu manda- sas pera despachar”, mas que recusou ar- sou: respondeu que se era para se confrontar
to foi marcado por isso. Há um rigor qua- gumentando que nada faria enquanto Lopo com o caso Fernão de Alcáçova (o feitor en-
se burocrático nas suas acções, que não é Soares não partisse da Índia. Saiu a cami- viado à Índia), que se dava por condenado e
próprio da época. nho de Cochim, onde começou a tratar dos não tencionava defender-se; se era para que
O novo governador seria Diogo Lopes de assuntos referentes à carga dos navios mas lhe dessem mercês, das que tinha já esta-
Sequeira, homem que já tinha estado na Índia alojando-se na casa do feitor sem querer va contente. D. Manuel conformou-se com
e que dirigira a tentativa infrutífera (trágica ocupar as casas que ainda estavam ocupa- esta atitude.
para alguns portugueses) de estabelecer uma das pelo antecessor. Teve ainda o cuidado Z
feitoria em Malaca no ano de 1509 (Marinha de escrever a todos os soberanos amigos, J. Semedo de Matos
de D. Manuel 40). Partiu de Lisboa coman- pedindo desculpa de não os ter visitado CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2004 11