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nhosa até ao interior da praça, para um poço guarnição militar da cidade. Digamos que Mazagão serviu – sem sombra de dúvi-
próprio, de onde era tirada para um chafariz. se gorou um dos principais objectivos ini- da – para a realização dos ideais de cruza-
Nas alturas de cerco, Mazagão tinha possibi- ciais, obrigando o país a reabastecer-se da que animaram a nobreza portuguesa
lidades de recorrer à água guardada na sua noutros locais da Europa (v.g. Valência) a dos séculos XVI e XVII, mas nem mesmo
cisterna, uma cons- essa finalidade teve
trução que ainda a continuidade que
existe e que se tor- se poderia pensar
nou um ex-libris da à partida. Natural-
própria cidade, dada mente que esses
a sua beleza e quali- combates eram leva-
dade arquitectónica. dos a cabo no estilo
Não são unânimes da razzia islâmica,
as opiniões sobre a com rápidas corre-
data e circunstân- rias pelos territórios
cias em que foi fei- circunvizinhos (as
ta, mas é provável entradas, como lhe
que a sua estrutura chamavam os portu-
principal, das abóba- gueses), destinadas
das e colunas, tenha a fazer prisioneiros
sido efectuada quan- (cujo resgate pode-
do da edificação do ria ser rentável) e a
primeiro castelo, em obter os respectivos
1514, pelos irmãos saques, que obriga-
Arruda. A verdade vam ao confrontos
é que a sua capaci- por que ambiciona-
dade era imensa, e vam os jovens cava-
todos os marinhei- leiros portugueses.
ros sabem avaliar A questão é que nem
da importância que sempre isso foi per-
oferecia aos mora- mitido pelo rei (tam-
dores a possibilida- A Porta do Mar e a calheta de acesso bém nem sempre
de de não lhes faltar essa proibição era
a água doce durante os mais longos cercos. preços menos convidativos. É bom que se respeitada) e, nalguns momentos, a guarni-
Agostinho Gavy de Mendonça que lá nas- diga que a produção não era constante, ha- ção foi reduzida a elementos de infantaria.
ceu e assistiu ao cerco de 1562, diz-nos da vendo muitos anos de verdadeira penúria Tal ocorreu, pelo menos, durante a regência
cisterna que “no tempo do cerco tinha cinco com fomes generalizadas que, certamente, de D. Catarina – com excepção do reforço
palmos e meio d’agoa, que monta a mil to- também se reflectiam na capacidade de ex- feito por ocasião do cerco de 1562 – e duran-
neladas o palmo, e acabado o cerco, que du- portação, mas verifica-se uma impossibili- te os reinados de Filipe I e uma parte do de
rou passante de dois Filipe II. É muito cla-
mezes, havendo na ro que esta actividade
vila passante de três não era muito bem
mil pessoas, faltou vista pela coroa que
um palmo de agua, o dela pouco lucrava e
que se teve por gran- que criava problemas
de maravilha, porque militares de grande
se deu sempre a agua peso. Digamos que se
liberalissimamente”. uma parte da nobreza
E este foi um dos mais sonhava com estas ca-
duros cercos (total de valgadas, a coroa via
nove) que sofreu a ci- nelas grandes incon-
dade durante a pre- venientes (e até des-
sença portuguesa. pesas). Parece-me ser
É curioso salientar necessário refazer a
que uma das razões história destas acções
que levou à instala- militares, que sempre
ção de feitorias por- foram tidas como per-
tuguesas na região de manentes no Norte
Duquela (onde está de África, mas que
Mazagão) foi a sua podem não ter tido
produção cerealífera a continuidade que
que correspondia a se supõe. Eu julgo,
uma necessidade do aliás, que a presença
reino de Portugal. A portuguesa em Ma-
verdade é que depois A Porta do Mar, vista do interior. zagão viveu sempre
da construção da for- entre a vontade régia
taleza e, sobretudo, depois da guerra mo- dade total, por parte dos portugueses, de de abandonar o local, e o receio do que esse
vida por Muhammed Shaykh, nunca mais beneficiar de um recurso que era abundan- abandono podia causar no prestígio interna-
se conseguiu tirar daquela terra trigo que te e a um preço competitivo com as fontes cional do monarca. D. Catarina – enquanto
chegasse, sequer, para o abastecimento da mediterrânicas. regente – preparou-se para a abandonar, e
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