Page 381 - Revista da Armada
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nhosa até ao interior da praça, para um poço  guarnição militar da cidade. Digamos que   Mazagão serviu – sem sombra de dúvi-
         próprio, de onde era tirada para um chafariz.  se gorou um dos principais objectivos ini-  da – para a realização dos ideais de cruza-
         Nas alturas de cerco, Mazagão tinha possibi-  ciais, obrigando o país a reabastecer-se  da que animaram a nobreza portuguesa
         lidades de recorrer à água guardada na sua  noutros locais da Europa (v.g. Valência) a  dos séculos XVI e XVII, mas nem mesmo
         cisterna, uma cons-                                                                     essa finalidade teve
         trução que ainda                                                                        a continuidade que
         existe e que se tor-                                                                    se poderia pensar
         nou um ex-libris da                                                                     à partida. Natural-
         própria cidade, dada                                                                    mente que esses
         a sua beleza e quali-                                                                   combates eram leva-
         dade arquitectónica.                                                                    dos a cabo no estilo
         Não são unânimes                                                                        da razzia islâmica,
         as opiniões sobre a                                                                     com rápidas corre-
         data e circunstân-                                                                      rias pelos territórios
         cias em que foi fei-                                                                    circunvizinhos (as
         ta, mas é provável                                                                      entradas, como lhe
         que a sua estrutura                                                                     chamavam os portu-
         principal, das abóba-                                                                   gueses), destinadas
         das e colunas, tenha                                                                    a fazer prisioneiros
         sido efectuada quan-                                                                    (cujo resgate pode-
         do da edificação do                                                                      ria ser rentável) e a
         primeiro castelo, em                                                                    obter os respectivos
         1514, pelos irmãos                                                                      saques, que obriga-
         Arruda. A verdade                                                                       vam ao confrontos
         é que a sua capaci-                                                                     por que ambiciona-
         dade era imensa, e                                                                      vam os jovens cava-
         todos os marinhei-                                                                      leiros portugueses.
         ros sabem avaliar                                                                       A questão é que nem
         da importância que                                                                      sempre isso foi per-
         oferecia aos mora-                                                                      mitido pelo rei (tam-
         dores a possibilida-  A Porta do Mar e a calheta de acesso                              bém nem sempre
         de de não lhes faltar                                                                   essa proibição era
         a água doce durante os mais longos cercos.  preços menos convidativos. É bom que se  respeitada) e, nalguns momentos, a guarni-
         Agostinho Gavy de Mendonça que lá nas-  diga que a produção não era constante, ha-  ção foi reduzida a elementos de infantaria.
         ceu e assistiu ao cerco de 1562, diz-nos da  vendo muitos anos de verdadeira penúria  Tal ocorreu, pelo menos, durante a regência
         cisterna que “no tempo do cerco tinha cinco  com fomes generalizadas que, certamente,  de D. Catarina – com excepção do reforço
         palmos e meio d’agoa, que monta a mil to-  também se reflectiam na capacidade de ex-  feito por ocasião do cerco de 1562 – e duran-
         neladas o palmo, e acabado o cerco, que du-  portação, mas verifica-se uma impossibili-  te os reinados de Filipe I e uma parte do de
         rou passante de dois                                                                   Filipe II. É muito cla-
         mezes, havendo na                                                                      ro que esta actividade
         vila passante de três                                                                  não era muito bem
         mil pessoas, faltou                                                                    vista pela coroa que
         um palmo de agua, o                                                                    dela pouco lucrava e
         que se teve por gran-                                                                  que criava problemas
         de maravilha, porque                                                                   militares de grande
         se deu sempre a agua                                                                   peso. Digamos que se
         liberalissimamente”.                                                                   uma parte da nobreza
         E este foi um dos mais                                                                 sonhava com estas ca-
         duros cercos (total de                                                                 valgadas, a coroa via
         nove) que sofreu a ci-                                                                 nelas grandes incon-
         dade durante a pre-                                                                    venientes (e até des-
         sença portuguesa.                                                                      pesas). Parece-me ser
           É curioso salientar                                                                  necessário refazer a
         que uma das razões                                                                     história destas acções
         que levou à instala-                                                                   militares, que sempre
         ção de feitorias por-                                                                  foram tidas como per-
         tuguesas na região de                                                                  manentes no Norte
         Duquela (onde está                                                                     de África, mas que
         Mazagão) foi a sua                                                                     podem não ter tido
         produção cerealífera                                                                   a continuidade que
         que correspondia a                                                                     se supõe. Eu julgo,
         uma necessidade do                                                                     aliás, que a presença
         reino de Portugal. A                                                                   portuguesa em Ma-
         verdade é que depois   A Porta do Mar, vista do interior.                              zagão viveu sempre
         da construção da for-                                                                  entre a vontade régia
         taleza e, sobretudo, depois da guerra mo-  dade total, por parte dos portugueses, de  de abandonar o local, e o receio do que esse
         vida por Muhammed Shaykh, nunca mais  beneficiar de um recurso que era abundan-  abandono podia causar no prestígio interna-
         se conseguiu tirar daquela terra trigo que  te e a um preço competitivo com as fontes  cional do monarca. D. Catarina – enquanto
         chegasse, sequer, para o abastecimento da  mediterrânicas.            regente – preparou-se para a abandonar, e
                                                                                    REVISTA DA ARMADA U DEZEMBRO 2004  19
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