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Reflexões Sobre o Novo Fenómeno das
          Reflexões Sobre o Novo Fenómeno das


               Ameaças e as Redes Internacionais
               Ameaças e as Redes Internacionais


                                                   (conclusão)

         III – AS REDES NA MITIGAÇÃO        em variadíssimos componentes (econó-  zona privilegiada de investimento único
         DAS SOBERANIAS E NO FIM            mico-monetários, sócio-políticos, estraté-  – com sede, quase sempre, em Madrid e
         DO ESTADO                          gico-militares). Será o caso, flagrante pela  Barcelona, não necessariamente com esta
                                            dimensão da intersecção dos interesses, da  cronologia de importância); em termos de
           Caminha-se, em passo firme, para a con-  União Europeia – numa evolução de mar-  decisão política em específico, o processo
         firmação plena de um processo, parece-nos,  cado crescimento e na transversalidade  de trasfega é, também, de alguma evidên-
         já iniciado: a mitigação do conceito de so-  de fases estratégicas: o Mercado Comum,  cia – dilui-se, em determinadas matérias,
         berania, a dispersão dos seus suportes fun-  a União Monetária, a Política Externa da  a figura da reserva absoluta de competên-
         damentadores – porque se dispersam tam-  União Europeia (PESC), a Identidade  cia da Assembleia da República, na trans-
         bém outras figuras conceptuais que lhe são  Europeia de Segurança e Defesa (IESD).  ferência para outros órgãos de decisão po-
         adstritas: a fronteira territorial, a própria no-  A concretização desta teoria de Estado  lítica europeia (O Parlamento Europeu, no
         ção de território, a noção de Pátria delimitada  transnacional surge agora na forma de  exemplo óbvio, ou mesmo a Comissão); na
         geograficamente.                    Lei Fundamental Europeia, com a Consti-  componente de recorte sociológico, temos
           A cena internacional, na leitura de hoje,  tuição ora em (profunda) discussão inter-  as crescentes necessidades de mão-de-obra
         deixou de estar inserta numa conjuntura –  governamental, e da qual já vão sendo re-  qualificada como sustentáculo de algumas
         é, ela própria, uma super-estrutura, onde os  tiradas algumas certezas dogmáticas.  áreas de actividade centrais do nosso país,
         sintomas das velhas ameaças se entrecruzam   O Estado, dividido - como aduzem al-  por exemplo.
         com os das novas ameaças (formatadas com  guns autores - nas suas vicissitudes essen-  Este cenário, se encarado aqui numa pers-
         novos meios e novas formas de exterioriza-  ciais, como condições da sua existência – o  pectiva algo individualista (porque do pon-
         ção – estando os Estados providos de menor  povo, o território, o poder político que aquele  to de vista de cada Estado), faz parte de
         capacidade de controlo sobre elas) e onde  exerce neste – entrou num processo de de-  um outro, amplíssimo, em que o que está
         as profilaxias engendradas para lhes fazer  cadência conceptual, em que as manobras  em causa é uma grande mudança geopolítica,
         face, as mais das vezes, inócuas e irrazoa-  de causa efeito oscilam entre a evolução dos  como sabiamente refere Ignacio Ramonet.
         velmente medíocres.                cenários políticos internacionais e a forma  Aponta-se, de súbito, o dedo à globaliza-
           Não valerá a pena, nesta sede, desenvol-  como cada Estado nacional reage a esta  ção, por tudo o quanto possa ter a ver com
         ver a temática, já de si hiperventilada,  da  onda evolutiva.         agregados internacionais de índole terroris-
         aldeia global; assumamos, como pressu-  Não se trata, obviamente, de defender  ta; fala-se em novas ameaças, novas cruza-
         posto, que a globalização carrega, também  uma mitigação crescente das soberanias por  das de terror, porque o perigo neste teatro
         ela, as culpas de uma série de fenómenos  culpa, unicamente, da desterritorialização  não se detecta e, portanto, não se contro-
         actuais com que nos deparamos no teatro  crescente dos Estados. A soberania de uma  la. E, acto contínuo (ainda que acto prévio,
         mundial.                           entidade estadual determina o seu acesso  também), o fenómeno Estado desvalori-
           A evidente (e crescente) desuniformização  ao teatro das relações internacionais, pela  za-se, dispersam-se-lhe os fundamentos,
         das culturas dos povos, sintoma reflexivo  determinação da sua personalidade jurídica  reduz-se a política a uma significância de
         das marés globalizadoras, é alimentada,  – na capacidade de praticar actos jurídicos  impotência crescente. Desverticalizam-se as
         também, por aquilo a que podemos cha-  que sejam relevantes internacionalmente,  organizações, que se flexibilizam nos seus
         mar de mundialização das redes. E, atente-se,  com a responsabilidade deles emergentes.  vértices – e falamos tanto de empresas mul-
         não falamos apenas das redes empresariais  Nesta medida, a soberania, como capacida-  tinacionais (tentacularmente, elas também,
         e das redes terroristas; referimo-nos a um  de jurídica de expressão de um Estado face  transnacionais) como de organizações não
         sentido lato de rede como forma transna-  a outras entidades soberanas pode, diga-  governamentais. O mundo, em termos de
         cional (ou supranacional, preferindo-se a  mos, duplicar-se. Ela própria também se tras-  controlo, abeira-se do caos decisório. São,
         semântica orgânica) de exteriorização de  fega do seio do Estado nacional para o seio  ainda assim (e uma vez mais), os cabou-
         interesses e(ou) denominadores comuns  da entidade supra estadual. Mas, no per-  cos da Cultura que têm que sustentar os
         – políticos, económicos, sociais ou com-  curso que toma este fenómeno de transna-  edifícios das Nações, das soberanias so-
         postos combinados de todos eles. As no-  cionalização dos Estados, aqueloutro proces-  brantes.
         vas morfologias de institucionalização (e  so de mitigação das realidades territoriais,   A soberania, no Antigo regime, habita-
         federação) política que se desenham para as  políticas, sociais e económicas das diversas  va no Monarca, por intermédio da “Gra-
         décadas vindouras são disso um dos melho-  soberanias nacionais, vai tomando forma,  ça de Deus” como dádiva divina em razão
         res exemplos e vão criar, situemo-nos nisso,  inevitavelmente. A sua forma própria, nos  da função do Rei. A eclosão das revoluções
         novas instabilidades.              novos quadros internacionais. A imposta  americana (1776) e francesa (1789) e a fer-
           Este fenómeno – a rede – reformata a es-  ou a permitida.           tilidade subsequente das democracias nas-
         trutura de composição geográfica e geoes-  Estes efeitos vão sendo hoje, e já não mo-  centes transferem a soberania para o Povo.
         tratégica do Mundo. Hoje, num estágio de  vediçamente, visíveis: desde logo, é patente  O artigo 3º da Declaração dos Direitos do
         evolução adaptado às novas realidades in-  a transposição das sedes de decisão políti-  Homem e do Cidadão, de Agosto de 1789,
         ternacionais, podemos considerar, ainda  co-económica de cada Estado para outros  determina que o princípio da soberania reside
         que arrojadamente – confesse-se –, a ideia  núcleos empresariais de gestão regionali-  essencialmente na Nação.
         de um Estado que pode ser transnacional   zada, ao nível Europeu (veja-se o exem-  Sabemos, razão das vicissitudes históri-
         - num conjunto confluente de interesses  plo, flagrante em termos de actualidade,  cas, e como bem lembra Adriano Moreira,
         partilhados por vários Estados, espraiados  do crescimento do Espaço Ibérico como  que foi o Estado o suporte garantístico da

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