Page 186 - Revista da Armada
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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA                                                                 3


                                Disciplina militar


               ivemos um período prolongado de paz, sem grandes pertur-  da por regulamentação muito rigorosa. Deve manifestar permanente
               bações da ordem internacional, que afectem, de forma directa  disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses
         Ve decisiva, a segurança dos portugueses. As Forças Armadas,  pessoais (Art.º 2º da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho). Por isso, no limite, não
         além de estarem empenhadas em operações no exterior, definidas no  tem direito a folgas. Se não fizer falta ao serviço beneficia de licenças
         novo quadro internacional em que estamos inseridos, cumprem as cha-  diárias, cuja recusa não pode dar lugar a nenhum recurso. Mas é, sobre-
         madas missões de interesse público, onde interactuam, de forma inten-  tudo, relativamente à preservação da sua vida, que o militar se encon-
         sa e permanente, com outros departamentos do Estado e organizações  tra mais desfavorecido, quando comparado com o funcionário público.
         civis. Possivelmente em consequência da prevalência destas missões  O militar está permanentemente disponível para lutar pela defesa da
         no quadro conjuntural da actividade das Forças Armadas, verifica-se  Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida. Também é sujei-
         uma certa tendência para o mimetismo dos militares relativamente à  to aos riscos de vida inerentes ao cumprimento das missões militares,
         obediência hierárquica civil.                                            bem como da formação, instrução e treino
           À primeira vista a disciplina militar e a                              que as mesmas exigem, quer em tempo de
         obediência hierárquica civil assemelham-se:                              paz, quer em tempo de guerra (Art.º 2º, da
         ambas recorrem a estatutos específicos que                                Lei n.º 11/89, de 1 de Junho).
         limitam os direitos e liberdades dos membros                               Na Administração Pública a obediência
         das Forças Armadas e dos funcionários da                                 hierárquica civil não ultrapassa os limites
         Administração Pública, com recurso a regras                              das actividades técnicas. O funcionário
         idênticas; ambas traduzem uma integração                                 público é um cidadão de plenos direitos
         de cidadãos num aparelho público fundado                                 em todas as questões da sua prática polí-
         na subordinação e correspondendo a uma                                   tica, nas quais o militar está sujeito a um
         utilização para os fins fixados pelo Governo.                              regime muito mais restrito. Com efeito, ao
         Todavia, entre a subordinação imposta pela                               funcionário público só se exige uma subor-
         disciplina militar e aquela que comporta a                               dinação técnica aos seus superiores hierár-
         obediência hierárquica civil, há duas dife-                              quicos. Requer-se que execute as ordens
         renças significativas: a subordinação militar                             recebidas e que faça bem o seu trabalho,
         é total e não somente funcional; é política e                            sem limitações dos direitos como cidadão.
         não apenas técnica.                                                      Por outras palavras, o funcionário público
           Na Administração Pública a obediência                                  pode professar qualquer opinião, sem so-
         hierárquica civil não ultrapassa os limites do                           frer qualquer sanção, exprimindo-a por es-
         exercício das funções. O funcionário público                             crito ou verbalmente, através da adesão a
         é um cidadão de plenos direitos em todas as                              um partido político, ou da participação em
         questões relacionadas com a defesa dos seus                              reuniões, manifestações ou associações. A
         interesses profissionais, ou com a independência da sua vida priva-  jurisprudência tem estabelecido que a expressão das opiniões do fun-
         da. Nestes dois planos, o militar está submetido a um regime muito  cionário público, seja limitada a lugares exteriores e fora das horas de
         mais restritivo.                                     serviço e, ainda, que seja feita com a moderação e compostura adequa-
           No campo dos interesses profissionais o militar não pode associar-  da ao seu nível hierárquico. A subordinação do militar é muito mais
         -se em sindicatos, sendo esta noção considerada incompatível com as  profunda. Na realidade, como as Forças Armadas são um instrumento
         regras da vida militar, embora as associações profissionais, com carác-  passivo do poder político, o militar deve ser fiel, não a determinado che-
         ter assistencial, deontológico ou sócio-profissional sejam permitidas  fe, regime, ou Governo, mas ao comando e ao poder político. Quantos
         por lei (Lei Orgânica n.º 3/2001, de 29 de Agosto). Também está fora  militares sentiram amargos de altivez executando ordens contrárias à
         de questão a participação do militar nas decisões que tem de pôr em  sua consciência e que, em seguida, depois de terem obedecido, se demi-
         prática, e a existência de órgãos paritários continua excluída das Forças  tiram? O militar não escolhe entre este ou aquele regime ou Governo. É
         Armadas (na Função Pública existe, por exemplo, o Conselho de Coor-  incondicionalmente fiel ao Governo legítimo do seu país, porque é ele
         denação da Avaliação). A greve dos militares é de tal forma impensável  que detém o poder político. Explica-se, assim, que as Forças Armadas
         que, na realidade, embora exista uma lei para limitar este direito (Art.º  estejam “esterilizadas” do ponto de vista político, e que toda a activida-
         31º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro), nunca foi necessário o recur-  de e toda a tomada de posição política seja recusada aos militares (Art.º
         so a sanções disciplinares ou criminais para punir infracções. Por fim,  31º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro). Para isso, as democracias oci-
         embora o militar disponha de recurso contra as decisões que atentem  dentais estabeleceram doutrina e produziram a legislação que isolou as
         contra o estatuto da sua condição, tem de cumprir as punições impos-  Forças Armadas no seio da nação e privou os militares da maior parte
         tas no quadro da disciplina das Forças Armadas, mesmo antes das de-  dos direitos, liberdades e garantias dos seus concidadãos.
         cisões sobre o resultado do recurso. Estas punições podem ser graves,   A disciplina militar cria hábitos de reconhecimento, compreensão e
         variando entre simples detenções e a prisão disciplinar.  aceitação do comando, sempre necessários nas Forças Armadas e vitais
           Relativamente à vida privada, enquanto o funcionário público não  em situações isoladas, inesperadas ou sucessivas de risco de vida, indi-
         está sujeito a condicionamentos muito restritivos das suas funções, o  vidual ou colectivo. Isto é especialmente importante, quando as decisões
         militar depende das exigências omnipresentes da disciplina. Por isso,  se precipitam e é necessário cumprir ordens sem tempo para reflexão.
         não pode exercer quaisquer actividades civis relacionadas com as suas  Todavia, para que isso seja possível, a disciplina militar coloca exigên-
         funções militares, ou incompatíveis com o seu grau hierárquico ou de-  cias muito superiores às que resultam da obediência hierárquica civil.
         coro militar, ou que o coloque em dependência, susceptível de afectar  São essas exigências que preservam a noção de dever, o grau de coesão,
         a sua respeitabilidade e dignidade (Art.º 16º do Estatuto dos Militares  o espírito de corpo e o sentido de missão que os militares devem ter.
         das Forças Armadas). O militar também não deve obedecer a outras  Também são elas que permitem às Forças Armadas manter as regras
         ordens senão às dos seus chefes, nem a outros símbolos para além da  especiais de organização e funcionamento, que conferem uma capaci-
         Bandeira Nacional. A vida privada do militar é igualmente condiciona-  dade de acção ímpar nos momentos críticos da vida nacional.  Z

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