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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA 3
Disciplina militar
ivemos um período prolongado de paz, sem grandes pertur- da por regulamentação muito rigorosa. Deve manifestar permanente
bações da ordem internacional, que afectem, de forma directa disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses
Ve decisiva, a segurança dos portugueses. As Forças Armadas, pessoais (Art.º 2º da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho). Por isso, no limite, não
além de estarem empenhadas em operações no exterior, definidas no tem direito a folgas. Se não fizer falta ao serviço beneficia de licenças
novo quadro internacional em que estamos inseridos, cumprem as cha- diárias, cuja recusa não pode dar lugar a nenhum recurso. Mas é, sobre-
madas missões de interesse público, onde interactuam, de forma inten- tudo, relativamente à preservação da sua vida, que o militar se encon-
sa e permanente, com outros departamentos do Estado e organizações tra mais desfavorecido, quando comparado com o funcionário público.
civis. Possivelmente em consequência da prevalência destas missões O militar está permanentemente disponível para lutar pela defesa da
no quadro conjuntural da actividade das Forças Armadas, verifica-se Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida. Também é sujei-
uma certa tendência para o mimetismo dos militares relativamente à to aos riscos de vida inerentes ao cumprimento das missões militares,
obediência hierárquica civil. bem como da formação, instrução e treino
À primeira vista a disciplina militar e a que as mesmas exigem, quer em tempo de
obediência hierárquica civil assemelham-se: paz, quer em tempo de guerra (Art.º 2º, da
ambas recorrem a estatutos específicos que Lei n.º 11/89, de 1 de Junho).
limitam os direitos e liberdades dos membros Na Administração Pública a obediência
das Forças Armadas e dos funcionários da hierárquica civil não ultrapassa os limites
Administração Pública, com recurso a regras das actividades técnicas. O funcionário
idênticas; ambas traduzem uma integração público é um cidadão de plenos direitos
de cidadãos num aparelho público fundado em todas as questões da sua prática polí-
na subordinação e correspondendo a uma tica, nas quais o militar está sujeito a um
utilização para os fins fixados pelo Governo. regime muito mais restrito. Com efeito, ao
Todavia, entre a subordinação imposta pela funcionário público só se exige uma subor-
disciplina militar e aquela que comporta a dinação técnica aos seus superiores hierár-
obediência hierárquica civil, há duas dife- quicos. Requer-se que execute as ordens
renças significativas: a subordinação militar recebidas e que faça bem o seu trabalho,
é total e não somente funcional; é política e sem limitações dos direitos como cidadão.
não apenas técnica. Por outras palavras, o funcionário público
Na Administração Pública a obediência pode professar qualquer opinião, sem so-
hierárquica civil não ultrapassa os limites do frer qualquer sanção, exprimindo-a por es-
exercício das funções. O funcionário público crito ou verbalmente, através da adesão a
é um cidadão de plenos direitos em todas as um partido político, ou da participação em
questões relacionadas com a defesa dos seus reuniões, manifestações ou associações. A
interesses profissionais, ou com a independência da sua vida priva- jurisprudência tem estabelecido que a expressão das opiniões do fun-
da. Nestes dois planos, o militar está submetido a um regime muito cionário público, seja limitada a lugares exteriores e fora das horas de
mais restritivo. serviço e, ainda, que seja feita com a moderação e compostura adequa-
No campo dos interesses profissionais o militar não pode associar- da ao seu nível hierárquico. A subordinação do militar é muito mais
-se em sindicatos, sendo esta noção considerada incompatível com as profunda. Na realidade, como as Forças Armadas são um instrumento
regras da vida militar, embora as associações profissionais, com carác- passivo do poder político, o militar deve ser fiel, não a determinado che-
ter assistencial, deontológico ou sócio-profissional sejam permitidas fe, regime, ou Governo, mas ao comando e ao poder político. Quantos
por lei (Lei Orgânica n.º 3/2001, de 29 de Agosto). Também está fora militares sentiram amargos de altivez executando ordens contrárias à
de questão a participação do militar nas decisões que tem de pôr em sua consciência e que, em seguida, depois de terem obedecido, se demi-
prática, e a existência de órgãos paritários continua excluída das Forças tiram? O militar não escolhe entre este ou aquele regime ou Governo. É
Armadas (na Função Pública existe, por exemplo, o Conselho de Coor- incondicionalmente fiel ao Governo legítimo do seu país, porque é ele
denação da Avaliação). A greve dos militares é de tal forma impensável que detém o poder político. Explica-se, assim, que as Forças Armadas
que, na realidade, embora exista uma lei para limitar este direito (Art.º estejam “esterilizadas” do ponto de vista político, e que toda a activida-
31º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro), nunca foi necessário o recur- de e toda a tomada de posição política seja recusada aos militares (Art.º
so a sanções disciplinares ou criminais para punir infracções. Por fim, 31º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro). Para isso, as democracias oci-
embora o militar disponha de recurso contra as decisões que atentem dentais estabeleceram doutrina e produziram a legislação que isolou as
contra o estatuto da sua condição, tem de cumprir as punições impos- Forças Armadas no seio da nação e privou os militares da maior parte
tas no quadro da disciplina das Forças Armadas, mesmo antes das de- dos direitos, liberdades e garantias dos seus concidadãos.
cisões sobre o resultado do recurso. Estas punições podem ser graves, A disciplina militar cria hábitos de reconhecimento, compreensão e
variando entre simples detenções e a prisão disciplinar. aceitação do comando, sempre necessários nas Forças Armadas e vitais
Relativamente à vida privada, enquanto o funcionário público não em situações isoladas, inesperadas ou sucessivas de risco de vida, indi-
está sujeito a condicionamentos muito restritivos das suas funções, o vidual ou colectivo. Isto é especialmente importante, quando as decisões
militar depende das exigências omnipresentes da disciplina. Por isso, se precipitam e é necessário cumprir ordens sem tempo para reflexão.
não pode exercer quaisquer actividades civis relacionadas com as suas Todavia, para que isso seja possível, a disciplina militar coloca exigên-
funções militares, ou incompatíveis com o seu grau hierárquico ou de- cias muito superiores às que resultam da obediência hierárquica civil.
coro militar, ou que o coloque em dependência, susceptível de afectar São essas exigências que preservam a noção de dever, o grau de coesão,
a sua respeitabilidade e dignidade (Art.º 16º do Estatuto dos Militares o espírito de corpo e o sentido de missão que os militares devem ter.
das Forças Armadas). O militar também não deve obedecer a outras Também são elas que permitem às Forças Armadas manter as regras
ordens senão às dos seus chefes, nem a outros símbolos para além da especiais de organização e funcionamento, que conferem uma capaci-
Bandeira Nacional. A vida privada do militar é igualmente condiciona- dade de acção ímpar nos momentos críticos da vida nacional. Z
4 JUNHO 2006 U REVISTA DA ARMADA