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Arquivo CTEN António Gonçalves substituição do navio-escola Sagres, escolha entre a vela e a máquina» e
«Pubicou o «Diário de Notícias» um interessante artigo intitulado «A
nele se sugere, como solução económica, que o velho navio de vela, no
termo dos seus dias, seja substituído nas suas funções por um aviso de 1ª
classe tipo «Bartolomeu Dias».
Nada tendo a objectar à transformação do aviso em navio-escola, até
por ser evidente que a preparação dos novos oficiais e marinheiros tem
de ser feita em navios de guerra modernamente equipados, a aceitação do
desaparecimento da vela na fase preliminar da sua formação suscita-nos a
publicação das seguintes considerações.
Ao aproximar-se uma decisão desta natureza não é possível esquecer o
importante papel que à Vela cabe na preparação do novo oficial, tornan-
do-o mais marinheiro, dando-lhe um perfeito conhecimento do meio em
que actua, formando-lhe e desenvolvendo-lhe qualidades, modificando
a sua maneira de sentir, pensar e querer, adaptando-lhe o corpo e mol-
dando-lhe o espírito.
A Vela não é apenas distracção elegante dos que podem suportar os
encargos de uma embarcação, um aprazível passatempo da juventude,
como podem julgar os profanos, nem uma prática anacrónica, filha de
um saudosismo doentio, como outros a consideram. Muito mais do que
isso, a Vela, além de um desporto saudável e de uma agradável iniciação
nas lides do mar, é um inestimável e insubstituível instrumento de perfeita
preparação profissional.
A Vela está na verdadeira essência da arte de navegar.
A acção da Vela como preparação profissional e formação do carác-
ter apresenta-se com duas formas completamente distintas: a prática do
desporto em embarcações miúdas e de cruzeiro e a navegação em gran-
des veleiros.
Nas embarcações miúdas e de cruzeiro ganha-se bagagem elementar
para a grande navegação, a desenvoltura necessária, a criação de reflexos,
o amor do desporto náutico. A realização de pequenos cruzeiros ao lon-
go da costa apresenta-se como excelente escola de marinharia, tal como
a participação em regatas se mostra uma forma útil de desenvolver o es-
pírito de corpo, a capacidade de improvisação, o gosto pela luta dentro
do respeito pelas regras.
Mas é nos grandes veleiros que o futuro oficial pode encontrar a arte e
o ofício de marinheiro na sua inicial pureza e na pureza do ambiente que
mais incutiram no homem do mar as tradicionais qualidades de persistên-
cia, desembaraço, camaradagem, paciência, iniciativa e labor.
Aspecto das varandas de um prédio em New Jersey por ocasião do desfile dos veleiros
no rio Hudson, em 1976. O contínuo decorrer dos anos cada vez mais vai separando os entu-
siastas da Marinha de hoje, absorvidos pela técnica e pelos compromissos
mais navios, sem serem alvo de qualquer tipo para a organização de militares internacionais, dos dourados dias dos navios de madeira e dos
de vigilância. um evento que se pre- homens de ferro. E, contudo, o magnífico espectáculo dos grandes navios
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Também a triste lição aprendida com o ma- tendia grande . de vela consegue impressionar, ainda, fortemente, a imaginação dos jo-
logrado veleiro Marques veio pôr de sobreaviso O ano de 1989 é o vens, interessando-os pelo mar. Nos tempos turvos de hoje, do primado
a Sail Training Association (STA) para as ques- momento em que se vê da supertécnica e da mecanização, da guerra sem tiros, dos satélites e dos
telecomandos, dos mísseis e dos «teddy-boys», a navegação à vela, no
tões relacionadas com a segurança, passando anual mente consagrada início da formação do oficial, permite um verdadeiro regresso à escola de
esta a exigir aos navios participantes nos even- a atribuição do troféu nobres qualidades que ela tende a desenvolver.
tos por si organizados, o rigoroso cumprimento Cutty Sark, e não ape- Raros são hoje os veleiros que sulcam as águas dos oceanos. Na sua
de todas as regras relativas à existência equipa- nas nos anos pares como quase totalidade são navios-escolas onde os jovens marinheiros do mundo
mentos e meios de salvação a bordo. havia sido instituído em civilizado iniciam a sua formação, onde se aperfeiçoam e se impregnam
Em 1976 os veleiros cruzaram pela segunda 1974. O que de alguma daquele espírito que só podem sentir os que já uma vez ouviram o gemer
vez o Atlântico para participarem nas come- forma veio provar que dos cabos e o cantar do vento nas enxárcias.
morações do bicentenário dos Estados Unidos, a importância das rega- É o reconhecimento da necessidade da Vela como meio seguro de forma-
tendo em Nova Iorque o desfile no rio Hudson tas e eventos atingira a ção profissional que tem levado o mundo Atlântico à conservação dos gran-
sido presenciado por mais de cinco milhões de maioridade, deixando de des veleiros, à sua reconstrução, à sua substituição ou à sua adaptação.
E se considerarmos que os marinheiros são o prolongamento de um
espectadores. Poucos dias antes, na largada da fazer sentido que conti- povo e os navios parcelas flutuantes do seu território, o nosso pensamento
regata na Bermuda, duas colisões aparatosas nuassem a existir anos voa para o velho navio-escola Sagres, com a sua feliz armação de barca,
envolveram cinco grandes veleiros. A primeira melhores e outros piores. cujos mastros e vergas, tantas vezes recordaram a estrangeiros as glórias da
entre o Juan Sebastian de Elcano, da Marinha Esta alteração coincidiu nossa nacionalidade e em cujo convés puderam velhos emigrantes chorar
Espanhola, e o Libertad, da Marinha Argenti- também com o facto de uma lágrima de saudade e de orgulho. Aos portos do Mediterrâneo e do
na, escassos metros à proa da Sagres, e uma a partir de então ter au- Norte da Europa, de Espanha e do Brasil, da Argentina e do Uruguai, da
segunda, a ré do veleiro português, teve como mentado grandemente a América do Norte, levou a Sagres, com o prestígio da nossa bandeira e a
protagonistas o Mircea, da Marinha Romena, disputa por parte das ci- vermelha insígnia cruciforme nos seus panos, o aprumo das suas guarni-
e o Christian Radich, da Noruega, que se en- dades no sentido de ver ções e a invulgaridade grandiosa e elegante das suas formas.
Em país de tão antigas tradições marítimas que remontam à fundação e
rascaram, um em cada bordo, com o Gazela escolhido o seu nome estão na base da própria nacionalidade, a Vela não é apenas ferramenta de
of Phildelphia. Este último, depois de ter sido para receber os gran- educação profissional; é um elemento de formação patriótica e do culto
adquirido em Portugal em 1971, fazia por essa des veleiros. Embora, a do passado; é um instrumento insubstituível de representação nacional; é
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altura a sua estreia de mar . avaliar pelos critérios da quase o símbolo de uma civilização que criámos e que tem como factor
Por ocasião do bicentenário da independên- Sail Training Association dominante as Descobertas e como fulcro o Mar Atlântico».
cia da Austrália, a STA foi também contactada (STA), nunca as razões In Diário de Notícias de 30MAR60 Comandante Serra Brandão
no sentido de disponibilizar o seu know-how de âmbito estritamente
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