Page 279 - Revista da Armada
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António Sérgio
                                          António Sérgio

                                Um Oficial de Marinha
                               Um Oficial de Marinha

              enho a impressão que o primeiro co-  letras, mas que não deixara uma marca su-  e o seu percurso, como uma globalidade
              nhecimento que tive do personagem  ficientemente funda no que eu identificava  onde se descobrem linhas de acção e con-
         TAntónio Sérgio ocorreu há mais de  como um pensamento português do século  sistências de carácter que resultam numa
         quarenta anos, numa aula de português,  XX. Só restava um. E que força tinha esse!...  exemplar coerência moral e intelectual. Foi,
         no Colégio Militar, dada pelo Dr. Dias Mi-  António Sérgio, pela certa.  sobretudo, um humanista que se auto-inti-
         guel. Um conhecimento indirecto e, de cer-  A verdade é que só alguns anos depois  tulou como ensaísta porque sentiu desde
         to modo, incerto porque resultou dum pe-  deste acontecimento, vim a descobrir esta  sempre a sua vocação reflexiva, a expres-
         queno episódio que teve lugar na referida  personalidade e sem saber que, afinal, ti-  são opinativa e a polémica, muito mais do
         aula, onde o professor expressou em                                       que a investigação de pormenor e a
         voz alta um pensamento que, uma re-                                       descoberta de novas coisas. E, ao es-
         cordação de momento, imediatamen-                                         crever estas linhas sobre ele, de certo
         te desmentiu e o deixou perturbado.                                       modo, sinto-me como que a violar a
         Dizia-nos a nós alunos de 13 anos que                                     sua própria personalidade, sempre
         o Colégio Militar tinha sempre produ-                                     que deixo resvalar a pena para um
         zido grandes homens de acção, gene-                                       discurso panegírico que é tão inevi-
         rais, um ou outro almirante, grandes                                      tável quanto cruel. Se é verdade que
         combatentes, engenheiros e advoga-                                        António Sérgio não desdenhava a ad-
         dos, mas não produzira homens de                                          miração dos outros, permitindo-se a
         saber reflexivo, de carácter contem-                                       pequenos devaneios de vaidade pró-
         plativo, homens daqueles que legam                                        pria de um espírito culturalmente su-
         ideias mais do que pontes ou viadu-                                       perior – diria aristocrático, no sentido
         tos. E pronunciando esta afirmação                                         em que reunia requinte, profundidade
         para uma turma de rapazes que dali                                        e grandeza –, também é certo que não
         tiravam apenas a imagem de glória                                         desejava que a sua obra fosse fecha-
         que o futuro reservara a alguns an-                                       da num panteão de ideias destinadas
         tigos alunos do Colégio, imediata-                                        ao preito reverente e acrítico de uns
         mente atalhou a sua divagação para                                        quantos visitantes. «Tomardes os di-
         dizer: mas há uma excepção – e fez                                        zerdes dos meus escritos como dog-
         uma pausa – uma excepção tão im-                                          mas incriticáveis – seria renegar-me
         portante que se me tivesse lembrado                                       de todo em todo. Haveis de me pou-
         antes nunca teria começado esta con-                                      par a esse absurdo: e no dia da morte
         versa. Dias Miguel era um homem                                           do vosso amigo, se quiserdes honrá-
         de trato fácil com os alunos, e não                                       lo, condignamente, não publiqueis
         encetava conversas a que não conse-                                       lamentos nem elogios – mas uma crí-
         guisse dar andamento com o poder                                          tica» - escreveu ele em 1926. E estou
         da sua argumentação que foi motivo   António Sérgio, 2º tenente.          convencido que foi sempre esse o es-
         da muita admiração que sempre por                                         pírito dos seus trabalhos que levou a
         ele tivemos. Uma figura notável. Mas, na  nha andado no mesmo colégio que eu.  cabo como se conduzisse uma cruzada con-
         altura, deixou envolvido por uma diáfana  Aliás, nos longínquos anos de 1970 ou 71,  tra a ignorância.
         onda de mistério, aquela observação sobre  quem lia e falava de António Sérgio com   Nasceu em Damão a 3 de Setembro de
         alguém que estudara no Colégio Militar e  uma particular admiração e conhecimen-  1883, no seio de uma família da média no-
         que considerava uma excepção de carácter,  to era o meu amigo Teixeira, camarada do  breza liberal, com uma larga tradição na
         ao ponto de o deixar apreensivo sem que-  meu curso que, como eu, despertava para  Marinha Portuguesa. O avô foi almirante,
         rer revelar de quem se tratava. Estas coisas,  o mundo vertiginoso da cultura, como ex-  ajudante de ordens do rei e governador da
         para mim, tinham o condão de despertar  pressão da realização humana, sendo hoje  Índia, e o pai alcançou o posto de vice-al-
         uma impaciente curiosidade e recordo-me  professor universitário de História de Arte.  mirante, desempenhando funções na admi-
         bem de ter sido eu que insisti para que nos  Foi nessa altura que comecei a ler António  nistração ultramarina. O próprio António
         fizesse a inconfidência de uma revelação.  Sérgio e fui percebendo que o “caso excep-  Sérgio deixou escrito que passou a infân-
         Mas ele cortou o tema  e desviou a conversa  cional”, referido de passagem numa aula  cia a ver navios, a desenhar navios, a via-
         para outro assunto.  Nunca mais me esqueci  de Português, em 1968,efectivamente, só  jar em navios e a brincar com barquinhos.
         daquele incidente e, durante anos, conjectu-  podia ser ele.          Na adolescência nunca pensou “ser outra
         rei sobre quem seria a imagem de filósofo   Não é possível transpor para as parcas  coisa, senão marinheiro” é o que nos diz
         que ali estudara. Haveria uns quantos pro-  linhas de um pequeno artigo da nossa Re-  Campos de Matos, num diálogo fictício em
         fessores universitários, e alguns com obra  vista da Armada, a dimensão intelectual de  que transcreve e compõe intervenções do
         feita e lugar na praça (como se usava di-  uma figura como António Sérgio. Os temas  próprio Sérgio proferidas ao longo da sua
         zer). Albuquerque? Lourenço?... Qualquer  que mereceram a sua reflexão são de uma  vida. E, efectivamente, depois de completar
         dos dois podia ser, mas ainda não tinham  pluridisciplinaridade assustadora. Diría-  a formação no Colégio Militar e um ano ves-
         reputação para serem assim referidos por  mos hoje que foi poeta? escritor? pedago-  tibular na Escola Politécnica, ingressou na
         Dias Miguel. Recuando mais um pouco,  go? sociólogo? historiador? economista?  Escola Naval, cujo curso concluiu em 1904,
         impunha-se a figura de Júlio Dantas, que  político? filósofo?... Foi seguramente tudo  fazendo a sua carreira até ao posto de 2º te-
         transportava a notoriedade de ter sido di-  isso e sempre com uma profundidade que  nente. Aparentemente, foi a revolução repu-
         rector da Biblioteca Nacional e homem de  só é perceptível analisando os seus escritos  blicana de 1910 que motivou o seu pedido
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U AGOSTO 2006  25
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