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de licença ilimitada, concretizando a demis-  por figuras como Guerra Junqueiro, Jaime  forma de idealismo – que tinha raízes nal-
         são definitiva em Junho de 1915. Conta-se  Cortesão, Antero de Figueiredo, Leonardo  guns filósofos europeus dos séculos XVIII
         (ou contou-se) sobre a sua saída da Mari-  Coimbra e o incontornável Teixeira de Pas-  e XIX, mas que também se revia em Platão
         nha algo que ilustrava uma eventual ati-  coais, com quem viria a ter o diferendo que  – constitui a essência do pensamento sergia-
         tude de radical rotura com o novo regime,  levou ao afastamento de António Sérgio. É  no, e não deixa de pressupor uma enorme
         de uma forma que corresponde à imagem  interessante analisar este conflito, porque  “fé” no ser humano e nas suas capacidades.
         mítica e romântica que sempre o acompa-  nele se compreende muito bem a estrutura  Mas teve consequências imediatas em ques-
         nhou, mas que sempre desmentiu. Dizia-se  de pensamento de Sérgio, as razões porque  tões aparentemente tão simples quanto a
         então que entrara no gabinete do Ministro  encetou e manteve a polémica com Teixeira  visão sobre a tradição, sobre a importância
         da Marinha e partira a espada à sua frente,  de Pascoais e com outros autores posterio-  da História de Portugal e sobre análise de
         num simbólico gesto de recusa dos novos  res, as suas ideias sobre História de Portu-  certos fenómenos de um carácter identifica-
         tempos. Exagero absoluto – diz o próprio  gal, algumas das suas posições políticas e,  do como tipicamente português, como era
         (Diálogo) – “Singelissimamente, comprei  de certo modo a sua prática corrente ou a  o “saudosismo lusitano” de Pascoais. Para
         meia folha de papel selado e pedi uma li-  forma como encarou e viveu a vida.  António Sérgio a tradição, tal e qual como
         cença ilimitada”. Eu creio que esta relação   Como nos descreve o próprio, quando  era entendida na vivência portuguesa da
         entre um mito criado pelas bocas                                             segunda década do século XX,
         do mundo – naturalmente com                                                  era algo de profundamente nega-
         os exageros próprios da situação                                             tivo e prejudicial a uma evolução
         que lhe agradava, de certa forma                                             necessária que devia assentar no
         – e a desconstrução desse mesmo                                              desenvolvimento científico e tec-
         mito, constituem uma caracterís-                                             nológico, e a que corresponderia
         tica muito própria e típica da vida                                          uma vivência social estruturada
         de António Sérgio. Voltarei a falar                                          de acordo com o racionalismo.
         neste assunto, mais adiante.                                                 Para ele, a “tradição” apregoada
           Mas pouco importa a forma                                                  não correspondia a uma realidade
         como deixou a Marinha. A ver-                                                concreta, mas um processo cons-
         dade é que (na prática) o fez em                                             truído que cultivava um passado
         1910, respondendo – segundo ele                                              anacrónico e bloqueava em abso-
         – ao apelo de uma intervenção                                                luto o desenvolvimento do país.
         social que assumia um carácter                                               “A tradição é não deixar perder
         essencialmente pedagógico, que                                               o que se ganhou, é o inconsciente
         viria a ser uma constante dos tex-                                           utilíssimo porque permite avançar
         tos, conferências e debates em que                                           sem sobressaltos” – escreveu em
         participou até ao final da sua vida,                                          1912. Ou seja, a tradição – segun-
         em 1969. A sua postura, nestes pri-                                          do Sérgio – deve ser algo de cons-
         meiros momentos de república,                                                truído com uma utilidade desen-
         corresponde a uma convicção de                                               volvimentista, e não um conceito
         vida que tem duas componentes                                                fundamental e estruturante pró-
         fundamentais: a primeira é a ânsia                                           prio do povo e da nação. E com o
         de participar na vida pública e de                                           mesmo sentido – à maneira positi-
         debater ideias, e debatê-las de for-  António Sérgio, 2º tenente, em grande uniforme.  vista, bem entendido – recusava a
         ma agressiva, criando o ambiente                                             História como elemento essencial
         da polémica onde se sentia como peixe na  frequentava na Escola Politécnica o ano  à própria cultura, tratando-a como coisa
         água; a segunda é a assunção de uma liber-  preparatório que lhe daria acesso à Escola  pouco mais que inútil, na medida em que
         dade pessoal, uma forma de vida fora de  Naval, fascinou-o a Matemática, o seu mé-  a nação portuguesa era algo de consolidado
         todas as instituições, dependente do seu  todo e a forma como ela sustentava uma ex-  e independente sem necessidade de alego-
         trabalho quotidiano persistente e de resul-  plicação de certos fenómenos da natureza.  rias unificadoras. É importante referir que
         tados imponderáveis. Juntadas as duas, é  Relata-nos que, num período que teve de  esta concepção não se entende sem que a si-
         muito provável que a revolução de 5 de  férias, ao viajar de comboio de Lisboa para  tuemos na época em que Sérgio produziu a
         Outubro tenha sido apenas um momento  Paialvo, deixou que o seu pensamento de-  maioria das considerações sobre o assunto.
         ou um pretexto para concretizar uma ideia  ambulasse pelo mundo da geometria ana-  Vivia-se numa fase em que o desenvolvi-
         antiga sem a violência da renúncia a uma  lítica, apercebendo-se de como era fantásti-  mento tecnológico e os sucessos científicos
         carreira que tinha o peso de uma enorme  ca a perfeita a ligação entre a manipulação  fascinaram a elite europeia, que acreditava
         tradição familiar.                 da álgebra e as correspondentes estruturas  num futuro sem limites, assente na mesma
           Num texto autobiográfico que escreveu  geométricas. Foi como uma luz que se lhe  racionalidade que tinha permitido esses
         em 1915 no Livre d’Or do Instituto Jean Jac-  acendeu na mente – escreveu mais tarde.  mesmos sucessos. E a entrada de Portugal
         ques Rousseau, diz que pensava dar aulas,  Toda a natureza era assim explicada e or-  nesta onda de progresso só tinha – para ele
         tomar conta da direcção de uma revista e  denada segundo uma criação pura da razão  – um embaraço à vista, mas esse embaraço
         colaborar com uma casa editora que teria  humana, sem a qual a realidade não passa-  estava-lhe agarrado à pele desde o final do
         representação em Lisboa, em Londres e no  va de um conjunto de sensações tão caóti-  século XVI, e consistia num estado de igno-
         Brasil, dando ideia que passaria a viver da  cas que não deveriam ser, sequer, tomadas  rância crónico que atribuía a vários facto-
         sua escrita e dos seus estudos, assim eles  como reais. A verdade (o conhecimento)  res da vida nacional. É incontornável, nesta
         merecessem a aceitação que supunha. É  não está em descobrir as coisas, mas cons-  interpretação, o peso da herança de Antero
         sabido que tentou, sem sucesso, ser admi-  titui um acto do pensamento validado na  de Quental – que admirara particularmen-
         tido como professor na Faculdade de Letras  sua coerência. Não há verdade sem racio-  te – e das suas “Causas da decadência dos
         de Lisboa, e data de 1912 a sua entrada na  nalidade, e só na mente humana a nature-  povos peninsulares”, conferência pronun-
         associação cultural Renascença Portuguesa,  za tem sentido. Esta maneira de entender o  ciada a 27 de Maio de 1871 no Casino Lis-
         fundada por ele próprio (apesar de não  mundo marcada por um racionalismo radi-  bonense. Aliás, Sérgio abraçava a visão que
         ter integrado nenhum órgão directivo) e  cal (cartesiano, bem entendido) e por uma  vinha de Antero, pela chamada Geração de

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