Page 281 - Revista da Armada
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70 até Oliveira Martins e à sua visão peda- o messianismo terá vida (ou poderá tê-la) tas muitas polémicas, nalguns casos, ainda
gógica da História, num sentido em que o enquanto se impuser a este povo, a contra- hoje não encerradas. E era esse o objectivo
ensino da mesma, no presente, devia ser por à sua fictícia e tão efémera grandeza, do próprio que apelava sistematicamente a
feito com a perspectiva restritiva do “não o espectáculo persistente da sua lúgubre que não lhe seguissem o passo, que não se
deixar perder o que se ganhou”. Oliveira decadência [acrescido à falta de uma boa apoiassem nele, mas aprendessem a criticá-
Martins era, aliás, o ponto onde se afastava elite – que lhe dê ensino de racionalismo -lo. A criticá-lo a ele e a tudo. Não com vício
de outros companheiros da Renascença Por- de método, de clareza mental]” – escreve contraditório, mas com sentido inquiridor
tuguesa, como Teixeira de Pascoais e mesmo ele no mesmo artigo que já tinha sido pu- que exige dar primazia à razão em todas as
Jaime Cortesão. O problema fundamental blicado na Águia em 1917. Em “A conquis- análises e conclusões. Foi esta a constante
deste diferendo assenta, naturalmente, no ta de Ceuta” (a que acrescenta o subtítulo de uma vida intelectual activa por mais de
intransigente racionalismo sergiano que de “Ensaio de interpretação não romântica sessenta anos, com incursões em temas e
não se compadece com as tentativas de en- do texto de Azurara”) julgo que concretiza disciplinas que cobrem uma vasta área do
contrar na análise do passado uma espécie melhor a nova forma de ler/fazer história. conhecimento. As opiniões que expressou
de “inconsciente colectivo” (avant la lettre) António Sérgio pega nos factos constantes sobre a sociedade e sobre política estão, aliás,
definidor e congregador. E o grande pomo na Crónica de Zurara e reinterpreta-os com na mesma linha: nunca se deixou alinhar ou
da discórdia estava no conceito so- submeter. Criticou, criticou, criticou,
ciológico de “saudosismo” que para mas reflectiu, também, e propôs. O
Pascoais si gni ficava o acordar de sen- cooperativismo sergiano não é outra
timentos capazes de catapultar o futu- coisa que um sistema social racional
ro e para Sérgio era a continuidade da e ético, assente na solidariedade e
“apagada e vil tristeza” de que falara numa moral impoluta. Utópico, bem
Camões, no final do século XVI. entendido, porque (mais uma vez)
Como muito bem explica Jorge Bor- carece de análise do próprio homem,
ges de Macedo, não havia racionalis- partindo de uma formulação ideal e
mo que resistisse ao desastre que re- idealista. O que não pode ignorar -se
presentou a II Guerra Mundial. “Foi é que, como na História, as polémicas
a prova prática e descomunal de que e formulações levantadas por Sérgio
a via racionalizada é um aspecto sig- nunca são superficiais e, com muita
nificativo mas particular do humano frequência, tocam em feridas cruciais
e pode tornar-se um luxo axiomático da sociedade portuguesa de ontem e
se acaso pretender dispor do exclusi- de hoje.
vo do acesso a esse mesmo humano”. Não podia deixar passar esta breve
E, penso eu, que o estudo da História observação sobre a figura de António
servirá sempre para que não se perca Sérgio, sem voltar a referir que foi um
a evidência deste exemplo, e dos que oficial da Marinha Portuguesa. É, aliás,
se lhe seguiram cronologicamente, por essa a razão porque este artigo surge
mais distantes que fiquem dos nossos na nossa revista e num número com
tempos. O próprio Sérgio, apesar do especial significado. Deve dizer-se que
debate com Pascoais e o abandono da sempre que o interpelaram sobre este
Renascença Portuguesa, só voltou à His- seu passado, nunca o renegou, mas
tória de Portugal alguns anos mais tar- António Sérgio – foto dos anos 50. também não o valorizou na dimensão
de, e com uma faceta ligeiramente di- que assumiu na sua vida. A persona-
ferente da que tinha defendido nesta altura, o seu racionalismo e a sua visão da socie- lidade de Sérgio é claramente marcada pela
embora sem abandonar o racionalismo que dade contemporânea. Àquilo que entende sua infância, ascendência social e pela forma-
presidia a todas as suas análises. A primeira ser a visão romântica decorrente da própria ção para ser Oficial de Marinha. E não me es-
vez que regressou ao tema foi com a edição letra do texto, e que imputa a decisão da tou a referir a uma herança incontornável do
do 1º volume dos Ensaios, onde está “Inter- conquista de Ceuta a um impulso de fazer filho e neto de almirantes que esteve muito
pretação não romântica do sebastianismo” uma guerra aos mouros para armar cava- próximo da corte, da família real e de toda
e “A conquista de Ceuta”. leiros os filhos mais velhos de D. João I (a a sua envolvência. Quando lhe falavam de
O primeiro deles entende-se na sequência Ínclita Geração), contrapõe um projecto da monarquia ou república dizia que isso não
das posições já assumidas contra o saudo- burguesia mercantil portuguesa do princí- era importante, mas não deixou de criticar
sismo, lutando contra a própria visão que pio do século XIV, representada na corte por duramente o jacobinismo pós 5 de Outubro,
Oliveira Martins desenhara do rei portu- João Afonso, vedor da fazenda, e suposto como não hesitou em afirmar-se republica-
guês morto em Alcácer Quibir. Sobretudo proponente da expedição. A ideia carece de no noutras ocasiões. É, também, evidente
afrontava-o a ideia [irracional] da espera fundamentação concreta e investigação do- que o período de formação na Escola Naval
de uma solução prodigiosa [D. Sebastião], cumental – o que é uma característica das não correspondeu às exigências intelectuais
que alguns teimavam em considerar como polémicas de Sérgio: partir apenas do que de quem já tinha lido quase toda a filosofia
um “sentimento inconsciente” próprio da se diz ou que está já escrito – e, por isso, tem importante produzida na Europa pós-ilumi-
“raça”. Desesperava-o o facto de alguns pressupostos absolutamente errados. Mas nismo. Mas há uma questão que não é possí-
desses autores não se pouparem em adjec- corporiza muito bem o que ele queria di- vel negar e que nos pode servir de exemplo:
tivos e definirem como inerente ao “génio zer quando falava de novas interpretações a abrangência do saber sergiano é a abran-
da raça” o que ele – racionalmente – acha- à luz da racionalidade inerente às próprias gência que se exige a um Oficial de Marinha,
va que tinha uma explicação antropológi- relações humanas. que está presente no conceito que presidiu à
ca simples que, neste caso, se condensava As interpretações históricas de António criação da Academia de Guardas -Marinhas
“sobre o vulto de um romântico pedaço de Sérgio não trouxeram nenhum particular e que persistiu ao longo da já centenária his-
asno”, e que era preciso combater. Como ex- contributo de substância à historiografia tória da Escola Naval.
plica, o fenómeno está muito longe de ser portuguesa, sobretudo por causa da escas- Z
português, constituindo uma forma de mes- sez investigativa que lhes está por detrás. J. Semedo de Matos
sianismo pior do que inútil. “Em Portugal Contudo tiveram o condão de deixar aber- CFR FZ
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