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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA 7
Fernando Oliveira
Vida e Obra
ernando Oliveira nasceu em Aveiro, no ano de 1507. Aos nove Um despacho do Cardeal Infante D. Henrique, datado de 22 de
ou dez anos iniciou os estudos com os Dominicanos, e aos tre- Agosto de 1551, deu-lhe a liberdade sob as condições de não se au-
Fze anos encontrava-se já no Convento da Ordem de S. Domin- sentar de Portugal sem licença e de se ocupar de exercícios virtuo-
gos em Évora, onde recebeu lições de Mestre André de Resende. Aí sos. No entanto, em Agosto de 1552 embarcou como capelão numa
permaneceu até aos vinte e cinco anos. Pouco depois abandonou a caravela integrada uma pequena frota de cinco navios, destinada a
Ordem e refugiou-se em Castela. transportar e repor nos seus antigos domínios, em Marrocos, o des-
Em 1536, segundo declarações suas não confirmadas, conseguiu a tronado rei de Velez. A expedição fracassou e os navios foram apri-
secularização por Carta Apostólica de Paulo III. Regressou a Lisboa sionados por uma frota argelina de 25 galés. Fernando Oliveira foi
e publicou a “Gramática da Linguagem Portuguesa”. Nesta altura encarregado do resgate dos portugueses, mas procedimentos pouco
era mestre dos «filhos e filhas de alguns senhores principais desta adequados terão conduzido à sua substituição nas negociações.
terra», entre os quais João de Barros, D. Fernando de Almada e o Entre 1552 e 1554 julga-se que Fernando Oliveira permaneceu em
Barão do Alvito. Até cerca de 1541 continuou a actividade docente. Lisboa escrevendo a “Arte da Guerra do Mar”. A 18 de Dezembro
Nesse ano embarcou de Barcelona para Génova num navio que foi de 1554 foi nomeado revisor ou corrector da Imprensa da Univer-
aprisionado por galés francesas, onde serviu como piloto. sidade em Coimbra, onde foi concluída, a 4 de Julho de 1555, a im-
Em 1543 regressou a Lisboa acompanhando o Núncio Apostólico. pressão daquela obra. O “Livro da Fábrica das Naus” deve ter sido
Desconhece-se a razão da estada de Fernando Oliveira em Itália. No escrito cerca de 1560, embora só tenha sido impresso em 1898, com
entanto, Lopes de Mendonça refere que deveria ter estado envol- um magnífico estudo de Henrique Lopes de Mendonça. Também
vido nas «complicadas negociações que a Corte portuguesa agita- escreveu uma “Arte de Navegação” (Ars Náutica) em latim, de que
va na Cúria Romana». Levou uma vida apagada até que, em 1545 apenas se conhece um exemplar em Leiden, Holanda.
entrou no Tejo uma armada francesa de 25 galés, comandada pelo Refere Quirino da Fonseca que terá regido Humanidades na Uni-
barão de La Garde. Esta força naval saíra de Marselha e dirigia-se versidade de Coimbra com notável competência, mas que algumas
ao Havre, a fim de se juntar «à armada de navios de vela do almi- teorias mais arrojadas, expressas verbalmente ou contidas na “Arte
rante Anebault, composta de 150 naus grossas e 60 de menor vulto. da Guerra do Mar”, onde explica a decadência do país pela degra-
Esta poderosa força naval destinava-se a atacar a Inglaterra, atra- dação do poder naval, deram origem a novas perseguições. Por isso,
vés de um desembarque anfíbio nas costas meridionais». Fernando a 26 de Outubro de 1555, cerca de 4 meses depois de publicar aquela
Oliveira inscreveu-se a bordo da galé do barão de Saint-Blancard e obra, foi novamente preso por dois anos pela Inquisição.
passou a servir como piloto. A partir de 1557 os dados sobre a vida de Fernando Oliveira são
Entre 1545 e 1546 Fernando Oliveira participou nas operações na- praticamente inexistentes. Cerca de dez anos depois, quando tinha
vais contra a Inglaterra. Os seus conhecimentos náuticos e a notável 58 anos de idade, o rei D. Sebastião concedeu-lhe a tensa de 20 000
sagacidade, contribuíram para que fosse conceituado junto do ba- réis, na qualidade de “Clérigo de Missa que lera casos de consciên-
rão de La Garde, que aceitou o seu conselho em questões relaciona- cia no Convento de Palmela”. Nesta época os seus serviços como
das com a construção naval e a divisão das presas. Porém, em 1546, piloto eram solicitados, tanto por espanhóis como por franceses.
depois de um combate de dois dias com dez navios ingleses, a galé No entanto, não se sabe se chegou a sair do país, até porque, numa
do barão de Saint-Blancard adiantou-se no combate e foi aprisio- “História de Portugal”, de que restam fragmentos, se intitula “Ca-
nada. Fernando Oliveira foi levado para Inglaterra. A partir deste pelão dos Reis de Portugal”. Lopes de Mendonça admite a hipótese
país manteve activa correspondência com o Conde de Castanheira, de, nesta altura, Fernando Oliveira ter representado qualquer papel
sobre assuntos que interessavam a Portugal, e pediu que lhe fosse nas lutas da sucessão ao trono de Portugal. Apesar de todas estas
permitido regressar à pátria. Em Janeiro de 1547 o rei Eduardo VI dúvidas, é um facto que várias obras autografadas do seu espólio
ter-lhe-á dado uma carta destinada a D. João III, que terá facilitado foram parar à Biblioteca do Cardeal Mazarino, e em 1668 foram in-
o seu regresso a Portugal no Outono desse ano. corporadas nas colecções da Biblioteca Real de Paris, actualmente
Refere Quirino da Fonseca que, depois do seu regresso, Fernan- Biblioteca Nacional.
do Oliveira frequentava a livraria de João Fernandes na rua Nova, Fernando Oliveira fundamentou e aprofundou o seu saber na
onde no dia 18 de Novembro de 1547 fez várias considerações sobre experiência verdadeiramente notável adquirida ao longo de uma
questões religiosas, presenciadas por pessoas ligadas à Inquisição. vida fascinante como padre, piloto e diplomata. É algo que se tor-
Denunciado ao Santo Ofício, foi alvo de um minucioso processo. O na evidente perante o pioneirismo e a profundidade das suas obras
primeiro interrogatório ocorreu a 21 de Novembro de 1547. Foi jul- como a “Arte da Navegação” e a “Arte da Guerra do Mar”. Aliás,
gado ao fim de nove meses. Na sua defesa perante os inquisidores, esta última tem, salvo melhor opinião, valor incomparavelmente
Fernando Oliveira «revela-se um cultor exímio do português do superior à tão divulgada “Arte da Guerra” (cerca de 20 páginas) de
seu tempo, um conhecedor profundo e subtil das letras sagradas e Maquiavel, seu contemporâneo pouco mais velho, que teve uma
profanas, homem de inteligência viva e construtiva, palavra fácil e vida igualmente atribulada e foi também autor de uma “Gramáti-
vibrátil». Apesar disso, a 4 de Agosto de 1548 foi «condenado por ca” (em 1518, sendo a de Fernando Oliveira de 1536).
heréticas, temerárias e escandalosas doutrinas por ele defendidas, Foi uma personalidade ilustre entre a extraordinária plêiade de
ordenando-se que delas fizesse abjuração formal e com a penitên- criadores do pensamento moderno, nacionais e estrangeiros, tais
cia de ser conservado preso por tempo indeterminado ao arbítrio como Erasmo, João de Barros, Garcia de Horta, Damião de Góis,
dos inquisidores». A 9 de Setembro de 1548, quando se encontrava Pedro Nunes, Aires Barbosa, Diogo de Gouveia, Maquiavel, Tomás
bastante doente, fez a sua abjuração formal. Porém, continuou pre- More, Lutero, Calvino e muitos mais. Foi um português notável e
so por mais dois anos. A 3 de Setembro de 1550 o castigo foi-lhe co- inconformado, que merece ser homenageado por ocasião do 5.º cen-
mutado, com a condição de retomar o hábito e tonsura sacerdotal e tenário do seu nascimento.
de ingressar no Mosteiro de Belém. Z
10 NOVEMBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA