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A MARINHA DE D. JOÃO III (25)



                                  A questão da China
                                  A questão da China


               uando D. João III subiu ao trono,  Contudo, de forma inconsciente ou para  noção do perigo em que se iria colocar.
               em Dezembro de 1521, herdava  esconder o desastre político da sua via-  É claro que quando chegou à China en-
         Qvários problemas e várias riquezas  gem, Simão Peres não deu a conhecer a  controu “mais de 300 vellas entre grandes
         que atravessavam toda a administração  ninguém o que verdadeiramente se tinha  e pequenas, das quais as oitenta eram mui-
         régia, desde o Extremo Oriente ao Brasil.  passado na China, e entusiasmou os seus  to grandes juncos de duas gáveas” – como
         Alguns desses problemas eram evidentes,  sucessores a que continuassem a fazer a  diz ele próprio. Ali perdeu dois navios, e
         decorriam do estilo próprio de governo e  viagem nas mesmas condições, indican-  cerca de dois terços do pessoal que leva-
         dos sonhos de seu pai, e já estava prepa-  do-lhes que tinha deixado, até, uma pe-  va, regressando a Malaca em circunstân-
         rado para os afrontar sabendo até quais  quena fortaleza na ilha de Taimam, onde  cias precárias, fora do período próprio da
         as resistências e apoios que iria ter junto  era costume efectuar o comércio com os  monção, com uns quantos sobreviventes
         das mais gradas figuras do Reino. Mas ou-  mercadores cantonenses.     que mal davam para manobrar os navios.
         tros permaneciam numa obscura penum-  Absolutamente convencido que o Im-  A carta que escreveu já a D. João III, em 15
         bra – como era o caso das Molucas – ou  perador de Pequim era mais um dos seus  de Novembro de 1523, quando estava em
         apresentavam-se                                                                         Goa, é bem expres-
         com perspectivas                                                                        siva da amargura
         que viriam a ser                                                                        e do enorme logro
         completamente                                                                           em que caíra, por
         goradas, como                                                                           causa das informa-
         aconteceu com as                                                                        ções erradas que re-
         promissoras rela-                                                                       cebera em Lisboa e
         ções com a China.                                                                       em Goa. E as gora-
           Estamos lembra-                                                                       das esperanças de
         dos que, no final da                                                                     Martim de Mello
         segunda década do                                                                       são um espelho da-
         século XVI, D. Ma-                                                                      quilo que D. João III
         nuel tinha prepara-                                                                     esperava da China,
         do uma embaixada                                                                        e que viu desapare-
         ao reino da China,                                                                      cer desta forma in-
         que fora transpor-                                                                      glória, sem ter per-
         tada a Cantão por                                                                       cebido muito bem
         Fernão Peres de                                                                         como e porquê,
         Andrade, e que aí                                                                       mas sem outra so-
         ficara sob a chefia                                                                     lução que não fosse
         do boticário Tomé                                                                       esperar por melhor
         Pires, à espera de                                                                      oportunidade.
         oportunidade para   Junco chinês.                                                         Em 1526 o rei es-
         se deslocar a Pe-  Itinerário, Jan Huygen van Linschoten. Amesterdão, 1596.             creveu a Pêro de
         quim (Marinha de D. Manuel (49)). Esta via-  vassalos, e que nada poderia travar o avan-  Mascarenhas, capitão de Malaca, dando-
         gem decorreu sem grandes problemas e, o  ço dos portugueses no Extremo Oriente,  -lhe instruções para que tentasse reatar as
         comércio efectuado no Rio de Cantão (Rio  em Março de 1521, D. Manuel nomeia  relações com a China, nos moldes em que
         das Pérolas) foi de tal forma lucrativo, que  Martim Afonso de Mello Coutinho para  decorriam antes deste conflito, mas esta
         deixou esperanças para uma nova fonte de  capitão mor de uma esquadra que iria à  carta é apenas mostra das dificuldades de
         rendimento, cuja dimensão se adivinhava  China, onde construiria uma fortaleza ou  comunicação e entendimento que existia
         muito lucrativa. Logo a seguir (1519) nova  ocuparia e guarneceria a que existisse, fi-  entre o Extremo Oriente e a capital do rei-
         esquadra sairia de Malaca para a China, co-  cando por governador da nova possessão,  no, a muitos meses de viagem.
         mandada por Simão Peres de Andrade, com  com poderes que o libertavam, inclusiva-  Dizem-nos algumas fontes que os portu-
         resultados comerciais ainda aceitáveis, mas  mente, de qualquer tutela do Vice-Rei ou  gueses de Malaca viveram anos de angús-
         deixando um rasto de rancor e desconfian-  Governador da Índia. E sem se dar conta  tia, temendo uma invasão dos chineses a
         ça para com os portugueses, que não teria  que iria, como David debilitado, defrontar  qualquer momento. E, embora este temor
         remédio. O novo capitão foi influenciado  um enorme e pujante Golias, Martim Mello  pareça ser exagerado, porque a China não
         pelo que era a comum política externa por-  partiu para a Índia, passou por Malaca e  dispunha de poder naval que pudesse pro-
         tuguesa no Oriente, baseada na força naval  seguiu para Cantão, com uma pequena es-  jectar a tal distância das suas costas, e temia
         e no poder da artilharia, que impunha re-  quadra onde predominava um séquito de  tanto os navios portugueses no Rio de Can-
         gras de comércio e de costumes, sem gran-  fidalgos do seu núcleo familiar e criados  tão quanto os portugueses temiam os seus
         des cuidados diplomáticos. E, sobretudo,  diversos da sua casa, disposto (ou conven-  juncos em Malaca, a verdade é que a linha
         não entendeu bem qual era a dimensão e a  cido) de que iria criar uma nova capital no  de comércio permaneceria fechada durante
         capacidade da China Imperial.      Oriente. Só em Malaca foi avisado do que  mais de uma década. Mais tarde voltaria a
           Quando os seus navios deixaram o delta  poderia ser o poder dos chineses e da ani-  ser retomada, em circunstâncias e moldes
         do rio das Pérolas, onde tinha até constru-  mosidade que ali ficara depois da viagem  que veremos na próxima revista.
         ído uma pequena fortaleza, deixou atrás  de Simão Peres, reforçando-se com mais                       Z
         de si um rasto de raiva e humilhação que  dois pequenos navios, mais por precaução        J. Semedo de Matos
         não iria ser tolerada pelo Império do Meio.  e conselho de outros que por convicção ou            CFR FZ

         18  JULHO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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