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REFLECTINDO… XIV
UNIÃO EUROPEIA
Porquê um Tratado?
ontinua o debate sobre a União Euro- suas fronteiras geográficas, mas os sedimentos a orientação e ritmo da construção europeia,
peia. Desenvolve-se o conhecimento deixados pelas múltiplas presenças foram-se isto é, de nos fazer sentir mais cidadãos euro-
Cque dela temos, mas parece que não dispersando por extensas regiões. O movi- peus. Porém, os referendos têm sido, mesmo
há progresso, quer no que se refere à credi- mento das ideias ultrapassou, como é natural, nas democracias que se consideram exempla-
bilidade da União, quer no consenso quanto o movimento das pessoas. Desde a expansão res, sistematicamente manipulados pelos par-
à orientação que está a tomar, na construção romana aos laços e guerras feudais, da ex- tidos políticos e, lamentavelmente, fortemente
do nosso futuro. pansão das ideias da Reforma ao movimen- associados à crítica de questões internas. Este
Uma das dificuldades que se vem sentindo to renascentista, das marchas napoleónicas à peso negativo supera muito as limitadas van-
resulta do facto de o debate ter quase sempre formação dos extensos Impérios Centrais dos tagens, parecendo não haver interesse em re-
um carácter nacional e se constatar, mais tar- séculos XIX-XX, a Europa foi sempre circula- correr à máquina pouco esclarecedora, pesada
de, que as decisões que nos interessam são ção. Os valores comuns da cultura europeia e cara do refendo.
tomadas a um nível supranacional, lá longe, são fruto dessa extraordinária mobilidade de Mas devemos ter em atenção um outro as-
em Bruxelas, por intervenientes muito pouco pessoas e de ideias, que a actual globalização pecto fundamental, de que a história nos dá
atentos às conclusões então apresentadas. apenas intensificou e tornou universal. inúmeros exemplos. As grandes transforma-
Há a sensação de que continuamos a não A mais forte e generalizada influência que ções políticas e sociais sempre foram difíceis
participar no processo de decisão. Somos ci- a Europa absorveu (toda a Europa greco-ro- e sempre necessitaram de um longo período
dadãos nacionais e não nos sentimos cidadãos mana, nórdica e oriental) foi a do cristianismo, de aceitação e interiorização.
europeus. Ou antes, verificamos que não fo- que cedo se tornou na principal componente A formação dos EUA passou por uma
ram criadas as condições que nos permitam da sua matriz cultural, independentemente longa fase de “alargamento”, mas a Consti-
assumir a condição de cidadãos europeus. de outras influências, mais ou menos antigas, tuição de 1787 só veio a ser verdadeiramen-
Por outro lado, o “debate europeu” devia mais ou menos fugazes. A «ideia Europa» está te aceite após a Guerra da Secessão (1861-
contribuir para clarificar melhor e fortalecer a entretecida das doutrinas e da história da Cristan- 1865), 78 anos depois e quando o texto já
percepção da relação cidadão nacional/cida- dade Ocidental (George Steiner, A Ideia Europa, incluía 13 Amendments.
dão europeu, evitando o carácter de debate Gradiva, 2007, p.50). Há encontros de culturas Os grandes princípios da Revolução Fran-
partidário para que quase sempre resvala. mais recentes, que merecem o nosso respeito cesa, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”,
A diversidade cultural da Europa é um fac- e nos levam a promover e desenvolver o di- são claramente valores da matriz cristã euro-
to indiscutível. É uma riqueza que terá que ser álogo político, ecuménico, inter-religioso, etc. peia. Foram escolhidos e aproveitados por
preservada. Mas é importante ter consciência Contudo, não são essas outras influências que um grupo laicista, jacobino e anticlerical, na
que essa diversidade foi construída sobre uma reconhecemos como factores comuns congre- sua luta contra um poder real absoluto e em
matriz de valores comuns. gantes, ou que estiveram na base da formação decadência. Mas os princípios da Revolução
Portanto, não é a diversidade de grande da União Europeia. Enriquecem-na, sem dú- Francesa, apesar da longa gestação e amadu-
parte dos factores culturais que nos poderá fa- vida, mas não presidiram ao nascimento da recimento durante o iluminismo, não ficaram
zer sentir que somos cidadãos europeus, mas “ideia Europa”. logo consolidados e a sociedade francesa per-
sim o conhecimento daqueles valores comuns, Na nossa cultura ocidental, o cidadão é o mitiu ainda a coroação de um “imperador re-
gerados, não na individualidade das nações, detentor da soberania. O cidadão delega na- publicano”.
mas no contacto e relacionamento histórico queles que elege a competência para governar A Sociedade das Nações (SDN) nasceu de
dos povos dum tão exíguo espaço geográfi- a sociedade em que se sente inserido, esperan- nobres intenções mas teve uma duração de
co, que é o continente europeu. do ter, como retorno dessa delegação, as deci- apenas umas duas décadas. Antes de ser ex-
É a atenção que hoje nos merece a existên- sões e acções que lhe permitam satisfazer as tinta, a ideia “reformadora” que foi a Carta do
cia desses valores comuns que está a permitir, mais legítimas necessidades e aspirações. Mas, Atlântico redigida em 1941, deu lugar à Carta
pela primeira vez na história, o processamento a Nação espera de todos a fidelidade à Cons- das Nações Unidas, quatro anos depois, em
de um movimento de união impar, que ocu- tituição, como garantia de que as liberdades 1945. A anterior experiência da SDN foi fun-
pa já quase toda a Europa geográfica. É algo de opção política não ofendem os valores fun- damental para o êxito da Carta das NU.
que as anteriores tentativas militares imperiais damentais que a identificam e que, por outro O texto da Convenção das Nações Unidas
nunca lograram conseguir. lado, a unem no mesmo projecto nacional. para o Direito do Mar foi considerado o mais
Pela sua dimensão e configuração geográ- Para nos confirmar como cidadãos euro- importante documento da ONU depois da
fica, a Europa, ou grande parte dela, foi facil- peus, deveremos pretender que se processe Carta. Após longa preparação, foi elaborado
mente percorrida a pé por diversos exércitos algo paralelo ao que nos formou como cida- um documento muito abrangente e exigente,
e por fortes migrações a que chamámos in- dãos nacionais. O Tratado Reformador, com o que fez com que algumas das principais po-
vasões: celtas, romanos, godos, normandos, este ou outro nome, é necessário. Não só de- tências recusassem a ratificação. O bolo, quan-
árabes, hunos, turcos, franceses, alemães, etc. verá ser mais um passo na definição das com- do é muito grande, não se come de uma vez;
Estes ventos que varreram a Europa não im- petências dos que nos governam, como uma parte-se às fatias.
pediram que se formasse a maior densidade garantia contra derivas inaceitáveis, e ainda Foi a França que propôs a criação da Co-
geográfica de Estados de todos os continentes um contributo importante para a definição ou munidade Europeia de Defesa e foi a França
(46 Estados num espaço próximo do território aperfeiçoamento do projecto comum. que, dois anos depois da assinatura do trata-
do Canadá e apenas 3 % superior ao da Chi- Assim, a nossa preocupação primeira e qua- do, recusou a sua ratificação em 30 de Agosto
na). Alguns povos do centro da Europa têm se única deveria estar orientada para a redac- de 1954, para logo a seguir, em 23 de Outubro
uma história muito antiga, mas são cidadãos ção, para o teor do Tratado. O referendo, mais do mesmo ano, pelos Acordos de Paris, acei-
de Estados formados há muito pouco tempo. do que uma oportunidade para cada um se tar uma nova modalidade de defesa comum,
A maioria dos Estados permaneceu na histó- manifestar contra o que não quer, teria o méri- através da criação da União Europeia Oci-
ria, independentemente da instabilidade das to de nos permitir participar e avalizar ou não dental. Agora, mais uma vez, foi a França que
4 AGOSTO 2007 U REVISTA DA ARMADA