Page 263 - Revista da Armada
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to grande, e tem mais de quinhentas legoas de costa,  não reflecte a realidade apesar de, como normal-  por Chapas que ainda se achão abertas em pedras e pão
         porque foram já Reynos devedidos, que agora saõ de  mente sucede, a lenda encontrar as suas raízes  na Caza da Câmara desta Cidade. Consta por vários
         um só Rey, mas diversos nas língoas, e todos Chins  em episódios documentados.    documentos principalmente por Chapas dos Chinas,
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         … são omens alvos e fornydos e os do Sertão mais   Com efeito, existem fontes  que mencionam  que também por tradições constantes que fora conce-
         apaçeonados e mais alluos que os da fralda do Mar,  a ajuda portuguesa no combate a piratas que  dida pelo Imperador da China aos Portugueses a Ilha
         costumam roupas compridas e asy as Molheres … os  molestavam a região de Cantão. De entre elas  de Macao, para nella se estabelecerem e contratarem
         que mandão são muyto graves e mandão apresurada-  vale a pena mencionar a visão que nos foi trans-  com os seus vassalos Chinas, porquanto o mesmo Im-
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         mente com estrondo e falão alto, são muyto crus e jus-  mitida através da obra de Montalto de Jesus   perador que era sciente que a Nação Portuguesa era
         tiçozos, que todos metem ao açoute, e tormento … He  (1863-1927). Este autor defende a tese da doação  quieta e amiga de usar fidelidade, nos concedeo licença
         terra que se governa toda por Letrados … e tem ElRey  de Macau como recompensa pelo auxílio pres-  para irmos contratar as terras de Cantão. ... Confir-
         por todo o Reyno Esquolas Geraes, e Engeminadores,  tado às autoridades chinesas na luta contra os  ma-se mais a doação … pela destruição que fisemos
         que andão engeminando os Moços, e como sabem bem  salteadores. Esta tese favorecia a legitimidade  de hum grande Ladrão e Levantado que andava por
         ler, e esqrever, passão-nos as Esquolas aprender o seu  da soberania plena de Portugal sobre o territó-  este tempo piratiando nestas Ilhas e Mares da Chi-
         Latim, que he lingoa mandarim …” [4].   rio, que lhe era cara.        na, o qual molestava fortemente as Embarcações dos
           Apesar do tratado verbal estabelecido entre                         mesmos Chinas, de que o Imperador sendo sciente nos
         Leonel de Sousa e o Almirante do Mar de Can-                          agradeceo mandando-nos dar huma Chapa de Ouro
         tão, a abertura ao comércio com os portugueses                        para o cabo da Armada que destruio o dito Ladrão, do
         não adquiriu imediata estabilidade. Com efeito,                       qual ainda conserva o nome em huma Ilha a onde se
         algumas autoridades provinciais começaram                             refugiavão … e se chama Ilha do Ladrão.”.
         a ser pressionadas por Pequim, alegadamente                             Mas a generalidade dos autores, designada-
         porque os portugueses associavam japoneses                            mente os estudiosos modernos portugueses e
         às suas empresas, o que já se tornava excessivo                       chineses, não alinham com a alegação do pré-
         para um regime que olhava para os estrangei-                          mio pelo combate aos piratas.
         ros com desconfiança.                                                    Será interessante, entre os que não alinham
           Apesar dos usuais sobressaltos, a situação                          pela “tese dos piratas”, referir o ponto de vis-
         evoluiu a coberto deste entendimento, e 1555                          ta de Andrew Ljungstedt , até por um certo
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         encontrou os navios de Diogo Pereira e de ou-                         exotismo que poderá revestir o facto de um co-
         tros mercadores invernando em Macau.                                  merciante sueco dos princípios do séc. XIX ter
           A minúscula quase-ilha era, já desde data                           investigado a História de Macau com recurso
         anterior ao acordo de Leonel de Sousa, por-                           às melhores fontes que estavam localmente dis-
         to de passagem regular do circuito comercial                          poníveis. Ljungstedt questionou o princípio de
         luso-sino-nipónico, a par das vizinhas ilhas de                       que Portugal exercia soberania em Macau. Por
         Lampacau e Sanchoão .                                                 esta razão, a sua obra gozou, durante mais de
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           Se tivesse estado em jogo uma competição                            um século, de baixa popularidade junto de al-
         para a escolha da futura base permanente dos                          guma historiografia produzida no território, à
         portugueses, os dois concorrentes finais pode-                         qual convinha defender a posição da conces-
         riam bem ter sido Macau e Lampacau. Porquê   Planta de Macau, autor anónimo, ca. 1615-1622.  são da soberania por parte do Imperador chi-
         então a península? Luís Filipe Barreto [1] colo-  Montalto [9] sustenta que o surto de pirata-  nês. No entanto, ao sueco, educado, viajado e
         ca a questão no plano das hipóteses, invocando  ria que assolava o Sul da China tinha origem  fino comerciante, não escapou a observação do
         condições “geográficas e estratégicas”, ligadas  numa aliança entre os mercadores japoneses  relacionamento das autoridades portuguesas
         com a segurança dos ancoradouros e o acesso  (impedidos de praticar os portos da China)  de Macau com a parte chinesa, representada
         a Cantão, sem afastar os factores de defesa do  e os bandidos locais, que resistiam e chega-  pelo mandarim da região vizinha. Esta obser-
         elenco de razões em causa.         vam a devastar as forças imperiais. E escreve  vação permitiu-lhe concluir que, para as auto-
                                            “S egundo as tradições de Macau, nesta conjuntura,  ridades chinesas, era bem claro que era a elas
         BASES DO ESTABELECIMENTO DOS       os portugueses atacaram e destruíram um grande  que competia tomar decisões sobre o futuro
         PORTUGUESES EM MACAU               número de piratas, desalojando-os do seu abrigo em  do território.
                                            Macau… Com este feito de armas os portugueses   O fio condutor das duas teses, a dos “piratas”
           São numerosos os relatos portugueses e chi-  adquiriram a posse de Macau. Os notáveis serviços  e a do “tratado” pode ser encontrado no relato
         neses de várias épocas sobre os episódios c oevos  por eles prestados foram relatados ao imperador, que  contido na “Ásia Sínica e Japónica”, obra de um
         do estabelecimento dos portugueses em Macau.  expressou o seu reconhecimento enviando ao seu  frade arrábido [13] de meados do século XVIII,
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         Alguns deles merecem a reserva decorrente  comandante a chapa de ouro . Nesse mesmo ano,  baseada em fontes do Leal Senado de Macau.
         de terem sido escritos pelos próprios intérpre-  1557, os mandarins e mercadores de Cantão obtive-  Nela refere o religioso que, no âmbito do acor-
         tes, como foi o caso da expedição de Leonel de  ram a sanção imperial para os portugueses se esta-  do de estabelecimento dos portugueses em Ma-
         Sousa, que nos é dada conhecer por carta que  belecerem em Macau.”. A posição de Montalto é  cau, terá sido contraída a obrigação de “…lançar
         ele dirige ao irmão do soberano. Outros são  pois no sentido da “…cedência incondicional de  fora da Ilha os ladroens, que nesta península fazião
         obscuros, surgem rodeados de fantasia (como  Macau aos portugueses…”.  a principal rezidencia, e daqui os sahião a insultar,
         é o caso da “Peregrinação” de Fernão Mendes   Um outro autor que navega nas águas de  pello que os temião muito…”. O texto do frade si-
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         Pinto) ou são construídos através de deduções  Montalto é José (Jack) Maria Braga . Numa sua  tua esta cláusula em 1557 (e não em 1554, ano
         especulativas.                     obra [5] divulga a “Colecção de vários factos aconte-  do “acordo Leonel de Sousa”), mas admite-se
           Outros ainda parecem visar a defesa de inte-  cidos nesta mui nobre Cidade de Macao pelo decurso  que possa ter constituído como que um adita-
         resses específicos, designadamente no que diz  dos annos”, uma compilação de autor anónimo,  mento ao tratado verbal, perante o incómodo
         respeito à natureza da soberania portuguesa  de algumas datas ligadas à história de Macau,  que os tais fora-da-lei  constituíam, tanto para
         relativamente ao território.       do período 1553-1748. Neste opúsculo, Braga re-  chineses como para os seus novos arrendatá-
           Com aparente pertença aquele último gru-  produz o texto original da “Colecção”, que faz  rios portugueses.
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         po foi, em alguns períodos, divulgado como  preceder de uma pequena introdução . Cita-se   Outro facto que pode ter contribuído para as-
         conhecimento comum que a cidade de Macau  então: “… 1557 – Neste ano alcançarão os Manda-  sociar o estabelecimento em Macau a um auxí-
         teria sido doada pela China a Portugal, como re-  rins e mercadores de Cantão a licença do Imperador da  lio militar português às autoridades locais foi o
         compensa pelo auxílio prestado no combate aos  China para fazerem assento os Portugueses nesta ilha  de, em 1564, ter ocorrido um feroz combate com
         piratas. Hoje sabe-se que esta versão romântica  de Macao o que o mesmo Imperador depois confirmou  piratas ao largo de Macau, vencido pelos por-
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