Page 320 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (53)
O Almoço de Curso…
O Almoço de Curso…
No mar tanta tormenta e tanto dano, Foi assim divertido saber que o Zé é neurolo- mente das viagens a países estranhos, exóti-
Tantas vezes a morte apercebida! gista, que a Fátima é ginecologista, que a outra cos e, principalmente, apeteceu-me falar-lhes
Em terra tanta guerra, tanto engano, Fátima é psiquiatra. Contudo, neste grupo ali dos poemas e desta escrita pública (que já vai
Tanta necessidade aborrecida! reunido havia uma singularidade – o Médico longa) na Revista da Armada. Mas calei-me.
da Marinha – eu próprio. Ser médico militar Falou mais forte a impressão de que a profis-
Lusíadas – Canto I
era uma opção muito pouco usual quando eu são militar é mal compreendida por qualquer
az este ano vinte anos que me formei entrei na Marinha. Após o período de formação grupo civil. Ficou a certeza de que não com-
como médico. Organizou-se um almo- de médicos, que aconteceu após o 25 de Abril, preenderiam, por exemplo, o desconforto físi-
Fço, com a pompa e a circunstância que com cursos que atingiam o milhar, aconteceu co do enjoo prolongado e, mais, muito mais
a ocasião exigia. Fui e vi as caras de pessoas, um numerus clausus reactivo e restritivo, que importante, não compreenderiam a poesia da
que comigo partilharam anos de vida, mas iria abranger a minha geração. O número de saudade…Não conseguiria explicar-lhes o êx-
que há muito tempo não via. A curiosidade era médicos formados na minha faculdade (a Fa- tase do Pico a surgir no horizonte, nem a bele-
imensa. Afinal vinte anos na vida de qualquer culdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de za daquele pôr do sol fotografado (que me deu
pessoa trazem muitas mudanças, vinte anos na Santa Maria) decresceu para a centena por ano. um prémio de fotografia), num fim de tarde nos
vida de um médico, são de importância fun- Assim aconteceu com a admissão de médicos trópicos. Não conseguiria, ainda, explicar-lhes
damental. Esse tempo diferencia a massa que na Marinha, em que cursos de duas dezenas de- que as palavras e as histórias a bordo têm um
éramos – porque na Medicina o curso (ainda ram lugar a cursos de três ou quatro, ou mesmo peso maior e que os marinheiros, pelo menos
que longo…) é apenas uma ferramenta básica a uma total ausência de candidatos. Mais tarde os que compreendem o mar, são românticos.
– nos técnicos especialistas que nos tornámos. esse facto teria reflexão no reduzido número de Tudo o resto, a “má vida” de que têm fama, só
É na especialidade que se define a actividade médicos subalternos, agravada pela saída maci- serve para esconder a paixão pelo porto mais
real de cada médico. A medicina permite a in- ça de médicos jovens, por abate ao quadro, mas bonito do mundo…o porto de Lisboa…
telectualidade e a meditação filosófica (como não é disso que quero tratar hoje… Não lhes disse, mas escrevo aqui, dos ami-
é o caso dos Psiquiatras e da elasticidade in- Alguns dos cerca de noventa médicos ali gos – daqueles que me telefonaram insisten-
telectual que necessitam), do trabalho manual presentes queriam saber como foi e é a minha temente na doença e na tristeza, que me vão
(como acontece em todas as cirurgias) e dos vida. Afinal, em que termos era diferente a mi- acompanhar na velhice, esses são quase todos
verdadeiros construtores de puzzles que são as nha vida pessoal e profissional da deles, que oficiais de marinha, dos muitos com quem
especialidades ditas médicas (Medicina Inter- fizeram o percurso civil? Apeteceu-me então partilhei camarotes apertados, tempestades e
na, Gastrenterologia, Neurologia, etc) – como dizer-lhe muitas coisas, principalmente as da desejos, enquanto embarcado. Claro também
tem sido bem evidenciado na série de grande alma, das dúvidas sobre a escolha – que sem- tinha amigos no curso, melhor dito, tinha ami-
sucesso “Dr. House”. Nestas últimas especia- pre me assaltaram – já que, que eu conheça, gas. Não pela razão maldosa que alguns leito-
lidades, procuram-se juntar queixas, sinais e a poucos médicos da minha geração entraram res vão inferir, mas porque a maior parte dos
informação de uma miríade de exames (sem- na Faculdade de Medicina a pensarem ser alunos eram do sexo feminino (tendência que
pre em crescendo na nossa medicina moderna médicos – navais. Apeteceu-me contar-lhes se reforçou ainda mais em anos vindouros) e
e tecnicista), até atingir um diagnóstico… das emoções durante as viagens, particular- porque consegui impressionar algumas (mais
sensíveis) com os livros que lia pelos anfitea-
tros, desde os primeiros livros de Lobo Antu-
nes, cheios de palavrões e de desencanto, que
eu lhes lia em voz alta, quer pelo exame oral
(de muito boa memória) com o Prof. Daniel
Sampaio – nessa altura um médico desconhe-
cido, que tinha um irmão licenciado em Di-
reito também desconhecido chamado Jorge
Sampaio – que acabou em citações de poesias
de Fernando Pessoa. Para muitos contudo era
apenas uma espécie de “enfant terrible”. Um
rapaz esquisito e solitário que morava numa
residência dos serviços sociais, onde havia
sempre alguém acordado. Era na Casal Ribei-
ro, ali mesmo junto à Defensores de Chaves,
de fama duvidosa…
A verdade é que este almoço me pôs a olhar
para trás e sobre a opção naval da minha vida.
Cheguei à conclusão que os momentos mais
intensos da minha vida foram passados na Ma-
rinha. Que os embarques e a vida naval – sim,
para os quais nunca fui voluntário – me trou-
xeram momentos inesquecíveis. É bem ver-
dade que a profissão nos torna naquilo que
somos e a opção naval, se levada a peito, nos
torna pessoas e por extensão médicos dife-
rentes. Obriga-nos a, constantemente, passar
30 SETEMBRO/OUTUBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA