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HISTÓRIAS DA BOTICA (53)



                         O Almoço de Curso…
                         O Almoço de Curso…



           No mar tanta tormenta e tanto dano,  Foi assim divertido saber que o Zé é neurolo-  mente das viagens a países estranhos, exóti-
           Tantas vezes a morte apercebida!  gista, que a Fátima é ginecologista, que a outra  cos e, principalmente, apeteceu-me falar-lhes
           Em terra tanta guerra, tanto engano,  Fátima é psiquiatra. Contudo, neste grupo ali  dos poemas e desta escrita pública (que já vai
           Tanta necessidade aborrecida!    reunido havia uma singularidade – o Médico  longa) na Revista da Armada. Mas calei-me.
                                            da Marinha – eu próprio. Ser médico militar  Falou mais forte a impressão de que a profis-
                               Lusíadas – Canto I
                                            era uma opção muito pouco usual quando eu  são militar é mal compreendida por qualquer
             az este ano vinte anos que me formei  entrei na Marinha. Após o período de formação  grupo civil. Ficou a certeza de que não com-
             como médico. Organizou-se um almo-  de médicos, que aconteceu após o 25 de Abril,  preenderiam, por exemplo, o desconforto físi-
         Fço, com a pompa e a circunstância que  com cursos que atingiam o milhar, aconteceu  co do enjoo prolongado e, mais, muito mais
         a ocasião exigia. Fui e vi as caras de pessoas,  um numerus clausus reactivo e restritivo, que  importante, não compreenderiam a poesia da
         que comigo partilharam anos de vida, mas  iria abranger a minha geração. O número de  saudade…Não conseguiria explicar-lhes o êx-
         que há muito tempo não via. A curiosidade era  médicos formados na minha faculdade (a Fa-  tase do Pico a surgir no horizonte, nem a bele-
         imensa. Afinal vinte anos na vida de qualquer  culdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de  za daquele pôr do sol fotografado (que me deu
         pessoa trazem muitas mudanças, vinte anos na  Santa Maria) decresceu para a centena por ano.  um prémio de fotografia), num fim de tarde nos
         vida de um médico, são de importância fun-  Assim aconteceu com a admissão de médicos  trópicos. Não conseguiria, ainda, explicar-lhes
         damental. Esse tempo diferencia a massa que  na Marinha, em que cursos de duas dezenas de-  que as palavras e as histórias a bordo têm um
         éramos – porque na Medicina o curso (ainda  ram lugar a cursos de três ou quatro, ou mesmo  peso maior e que os marinheiros, pelo menos
         que longo…) é apenas uma ferramenta básica  a uma total ausência de candidatos. Mais tarde  os que compreendem o mar, são românticos.
         – nos técnicos especialistas que nos tornámos.  esse facto teria reflexão no reduzido número de  Tudo o resto, a “má vida” de que têm fama, só
         É na especialidade que se define a actividade  médicos subalternos, agravada pela saída maci-  serve para esconder a paixão pelo porto mais
         real de cada médico. A medicina permite a in-  ça de médicos jovens, por abate ao quadro, mas  bonito do mundo…o porto de Lisboa…
         telectualidade e a meditação filosófica (como  não é disso que quero tratar hoje…  Não lhes disse, mas escrevo aqui, dos ami-
         é o caso dos Psiquiatras e da elasticidade in-  Alguns dos cerca de noventa médicos ali  gos – daqueles que me telefonaram insisten-
         telectual que necessitam), do trabalho manual  presentes queriam saber como foi e é a minha  temente na doença e na tristeza, que me vão
         (como acontece em todas as cirurgias) e dos  vida. Afinal, em que termos era diferente a mi-  acompanhar na velhice, esses são quase todos
         verdadeiros construtores de puzzles que são as  nha vida pessoal e profissional da deles, que  oficiais de marinha, dos muitos com quem
         especialidades ditas médicas (Medicina Inter-  fizeram o percurso civil? Apeteceu-me então  partilhei camarotes apertados, tempestades e
         na, Gastrenterologia, Neurologia, etc) – como  dizer-lhe muitas coisas, principalmente as da  desejos, enquanto embarcado. Claro também
         tem sido bem evidenciado na série de grande  alma, das dúvidas sobre a escolha – que sem-  tinha amigos no curso, melhor dito, tinha ami-
         sucesso “Dr. House”. Nestas últimas especia-  pre me assaltaram – já que, que eu conheça,  gas. Não pela razão maldosa que alguns leito-
         lidades, procuram-se juntar queixas, sinais e a  poucos médicos da minha geração entraram  res vão inferir, mas porque a maior parte dos
         informação de uma miríade de exames (sem-  na Faculdade de Medicina a pensarem ser  alunos eram do sexo feminino (tendência que
         pre em crescendo na nossa medicina moderna  médicos – navais. Apeteceu-me contar-lhes  se reforçou ainda mais em anos vindouros) e
         e tecnicista), até atingir um diagnóstico…  das emoções durante as viagens, particular-  porque consegui impressionar algumas (mais
                                                                               sensíveis) com os livros que lia pelos anfitea-
                                                                               tros, desde os primeiros livros de Lobo Antu-
                                                                               nes, cheios de palavrões e de desencanto, que
                                                                               eu lhes lia em voz alta, quer pelo exame oral
                                                                               (de muito boa memória) com o Prof. Daniel
                                                                               Sampaio – nessa altura um médico desconhe-
                                                                               cido, que tinha um irmão licenciado em Di-
                                                                               reito também desconhecido chamado Jorge
                                                                               Sampaio – que acabou em citações de poesias
                                                                               de Fernando Pessoa. Para muitos contudo era
                                                                               apenas uma espécie de “enfant terrible”. Um
                                                                               rapaz esquisito e solitário que morava numa
                                                                               residência dos serviços sociais, onde havia
                                                                               sempre alguém acordado. Era na Casal Ribei-
                                                                               ro, ali mesmo junto à Defensores de Chaves,
                                                                               de fama duvidosa…
                                                                                 A verdade é que este almoço me pôs a olhar
                                                                               para trás e sobre a opção naval da minha vida.
                                                                               Cheguei à conclusão que os momentos mais
                                                                               intensos da minha vida foram passados na Ma-
                                                                               rinha. Que os embarques e a vida naval – sim,
                                                                               para os quais nunca fui voluntário – me trou-
                                                                               xeram momentos inesquecíveis. É bem ver-
                                                                               dade que a profissão nos torna naquilo que
                                                                               somos e a opção naval, se levada a peito, nos
                                                                               torna pessoas e por extensão médicos dife-
                                                                               rentes. Obriga-nos a, constantemente, passar

         30  SETEMBRO/OUTUBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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