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HISTÓRIAS DA BOTICA (56)



           Um homem estranho em terra estranha…
            Um homem estranho em terra estranha…
                        a força de um agradecimento…
                        a força de um agradecimento…

              lgumas coisas não podem ser ditas, só  os acessos venosos: as veias que teriam que ser  para os outros, pois sorrir é certamente sinal de
              ficam bem escritas. Muitas destas pai-  canalizadas, para administrar as drogas que lhe  fraqueza, pouco consentânea com os tempos
         Aram-me na alma dias e dias, até que fi-  iam aliviar a dor e até talvez salvar vida. Primei-  modernos, que são de demonstração firme e
         nalmente, num acto de pura necessidade saem  ro tentaram os enfermeiros – a classe profissio-  inquestionável do próprio ego.
         – para o papel, ou melhor para o computador.  nal com mais experiência no acto de canalizar   Um agradecimento simples é, muitas vezes,
         Crescem num ímpeto, como o vapor de uma  uma veia periférica – não foi possível. Depois  de grande importância. O agradecimento, ge-
         panela com demasiada pressão, como o grito  tentaram os médicos internos (médicos jovens,  nuíno e simples, daquele doente, justificou-se
         no peito da ave ferida, ou com a força da es-  em formação) canalizar uma veia central (uma  plenamente – e estou certo que tocou o coração
         perança que o riso da criança contém. Penso e  veia de maior calibre, habitualmente a veia ju-  do médico em questão. E eu – certamente um re-
         acredito que muitos escrevem assim e, certa-  gular, ou a veia subclávia), em teoria melhor,  trógrado “bota de elástico” – acredito que todos
         mente, a maioria com muito mais arte do que  pois permite maiores débitos. Ninguém até aí  merecem um agradecimento, mesmo quando
         eu…Assim é com a história, médica, que hoje  tinha conseguido. Nestes actos mais ou menos  só fazem o que lhes é devido. Tornámo-nos nos
         vos trago aqui. Esta história não tem desta vez,  desesperados, acabou por chegar um médico  últimos anos, pelo menos nas grandes cidades,
         nada de naval, nada de militar, mas tem – acre-  mais velho, silencioso e tímido. Homem bar-  num Portugal frio e vazio no tratamento das pes-
         dito eu – muito do sentido humano, que deve  budo, de muito poucas palavras. Agarrou no  soas. Somos um país com demasiada agressivi-
         nortear a medicina e, acrescento ousadamen-  material que outros tinham deixado – havia um  dade, da qual o trânsito é boa testemunha. Na
         te, a vida…                        grande silêncio e até uma certa solenidade na-  verdade, como se diz coloquialmente – “já não
                                                              quela sala de cuida-  há respeito” – quer por pessoas, quer por institui-
                                                              dos intensivos – e  ções. Talvez tenha acontecido porque passámos
                                                              preparou-o cuidado-  de um país pobre e sofrido, mas aonde havia
                                                              samente. Avançou,  (ou era imposto) um certo respeito social pelos
                                                              sempre em silêncio,  outros – que se encontra ainda hoje em países,
                                                              para o que restava  bem mais ricos e desenvolvidos do que nós – a
                                                              da perna direita do  um país sem valores. À maneira de chalaça, um
                                                              paciente. Procurava  amigo Oficial, afirmava sobre este tema:
                                                              a veia femoral, outra   - Não tenhas dúvidas, são já várias gera-
                                                              das vias de grande  ções de visores de telenovelas. Aquilo embo-
                                                              calibre, administrou  ta o espírito de qualquer mortal – dizia entre
                                                              a anestesia local e,  gargalhadas.
                                                              por momentos, pa-  Não sei se o meu amigo estará correcto (em-
                                                              receu-me vislum-  bora a teoria pareça atraente), mas trata-se cer-
                                                              brar algo estranho.  tamente de um problema de educação (ou da
                                                              – Fechou os olhos,  falta dela). O que interessa é que quero conti-
                                                              primeiro numa quie-  nuar a ser um estranho em terra estranha. Falo
                                                              tude meditativa e  aos guardas do portão. Cumprimento os amigos
                                                              manteve-os fecha-  da cozinha. Chamei até “Van Gogh da panifi-
                                                              dos à medida que  cação”, a um padeiro da “Vasco da Gama” que
           Tratava-se de um doente ainda novo, diabé-  avançava a agulha. Em segundos a veia estava  conheci, porque o resultado da sua arte alegrou
         tico insulinodependente, muito obeso e já com  canulada. O ambiente aliviou. Os medicamen-  a minha vida. Agradeço a todos, mesmo os mais
         doença vascular generalizada. As suas duas  tos começaram a fluir. O paciente sentiu alívio  simples, nem que seja só por existirem e, à sua
         pernas haviam sido amputadas, pelas múltiplas  e num sentido agradecimento voltou-se para o  maneira, amenizarem o meu trabalho, a minha
         oclusões arteriais que a arteroesclerose galopan-  médico e agradeceu:  existência. E sorrio, sorrio a todos, pois o sorri-
         te tinha imposto, fazia já alguns anos. Passara a   - Obrigado doutor, estava farto de sofrer…  so ameniza tensões e traz acima tudo o que o
         andar numa cadeira de rodas. Contudo e ape-  Aquele agradecimento caiu-me fundo, na  ser humano tem de bom. Sim, já fiz mesmo al-
         sar destes sofrimentos, pouco tinha mudado nos  alma vazia, de estrangeiro em terra estranha, em  guns sacrifícios, como beijar idosas com bigo-
         seus hábitos. Continuava a ter dificuldade em  que amiúde existo. Pois vivemos cada vez mais  des maiores que o meu e desejar bem a quem
         controlar os doces, fumava mesmo um cigarro  num mundo de gente orgulhosa, cheia de von-  já me fez sentir mal…
         ocasional. Quando conheci a sua história per-  tade de exigir os seus direitos, mas pouco dada   É que agradecer, sorrir e cumprimentar ele-
         cebi como é verdade a mensagem dos pobres  às delicadezas que aliviam a tensão social. Já é  va-nos a alma, não a diminui, como parece ser
         de África ou da Ásia esquecida: lá sofre-se pela  normal não dizer Bom Dia, ou Boa Tarde (mui-  cada vez mais crença vigente. Não vou longe,
         penúria, aqui sofre-se pela abundância. O deno-  tas vezes quando o fazemos em lugares públi-  dirão muitos dos que lerem estas ingenuidades
         minador comum, o sofrimento, esse está sempre  cos olham-nos com ar estranho, como se fos-  baratas. Enganam-se, já fui longe e espero con-
         presente, mesmo naqueles que o disfarçam mais  semos seres alienígenas). Se paramos para dar  tinuar a subir…
         ou menos bem. É o fado da humanidade…  passagem na passadeira, também pouca gente   Ia-me quase esquecendo…Muito Obrigado a
           Havia sido admitido, naquele hospital central  agradece – como se alguma da dignidade do  todos, grandes e pequenos, que lêem estas histó-
         de Lisboa, por um enfarte agudo do miocárdio  circulante peão fosse beliscada pelo menear de  rias, pacatas e simples. Tenham um Bom Dia…e
         - pois a doença que lhe atingira as artérias das  cabeça, que justificaria o incómodo do condu-  juntem-se a esta legião de estranhos, nesta nossa
         pernas, não lhe perdoava, também, o coração.  tor. Também não agradecemos a quem nos ser-  terra, cada vez mais estranha…
         Sofria com a dor e o medo. Ora, o seu morfótipo  ve pois “fazem aquilo para que lhes pagam…”          Z
         não permitia que lhe descobrissem facilmente  dizem muitos. Sorrimos cada vez menos uns             Doc

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