Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (56)
Um homem estranho em terra estranha…
Um homem estranho em terra estranha…
a força de um agradecimento…
a força de um agradecimento…
lgumas coisas não podem ser ditas, só os acessos venosos: as veias que teriam que ser para os outros, pois sorrir é certamente sinal de
ficam bem escritas. Muitas destas pai- canalizadas, para administrar as drogas que lhe fraqueza, pouco consentânea com os tempos
Aram-me na alma dias e dias, até que fi- iam aliviar a dor e até talvez salvar vida. Primei- modernos, que são de demonstração firme e
nalmente, num acto de pura necessidade saem ro tentaram os enfermeiros – a classe profissio- inquestionável do próprio ego.
– para o papel, ou melhor para o computador. nal com mais experiência no acto de canalizar Um agradecimento simples é, muitas vezes,
Crescem num ímpeto, como o vapor de uma uma veia periférica – não foi possível. Depois de grande importância. O agradecimento, ge-
panela com demasiada pressão, como o grito tentaram os médicos internos (médicos jovens, nuíno e simples, daquele doente, justificou-se
no peito da ave ferida, ou com a força da es- em formação) canalizar uma veia central (uma plenamente – e estou certo que tocou o coração
perança que o riso da criança contém. Penso e veia de maior calibre, habitualmente a veia ju- do médico em questão. E eu – certamente um re-
acredito que muitos escrevem assim e, certa- gular, ou a veia subclávia), em teoria melhor, trógrado “bota de elástico” – acredito que todos
mente, a maioria com muito mais arte do que pois permite maiores débitos. Ninguém até aí merecem um agradecimento, mesmo quando
eu…Assim é com a história, médica, que hoje tinha conseguido. Nestes actos mais ou menos só fazem o que lhes é devido. Tornámo-nos nos
vos trago aqui. Esta história não tem desta vez, desesperados, acabou por chegar um médico últimos anos, pelo menos nas grandes cidades,
nada de naval, nada de militar, mas tem – acre- mais velho, silencioso e tímido. Homem bar- num Portugal frio e vazio no tratamento das pes-
dito eu – muito do sentido humano, que deve budo, de muito poucas palavras. Agarrou no soas. Somos um país com demasiada agressivi-
nortear a medicina e, acrescento ousadamen- material que outros tinham deixado – havia um dade, da qual o trânsito é boa testemunha. Na
te, a vida… grande silêncio e até uma certa solenidade na- verdade, como se diz coloquialmente – “já não
quela sala de cuida- há respeito” – quer por pessoas, quer por institui-
dos intensivos – e ções. Talvez tenha acontecido porque passámos
preparou-o cuidado- de um país pobre e sofrido, mas aonde havia
samente. Avançou, (ou era imposto) um certo respeito social pelos
sempre em silêncio, outros – que se encontra ainda hoje em países,
para o que restava bem mais ricos e desenvolvidos do que nós – a
da perna direita do um país sem valores. À maneira de chalaça, um
paciente. Procurava amigo Oficial, afirmava sobre este tema:
a veia femoral, outra - Não tenhas dúvidas, são já várias gera-
das vias de grande ções de visores de telenovelas. Aquilo embo-
calibre, administrou ta o espírito de qualquer mortal – dizia entre
a anestesia local e, gargalhadas.
por momentos, pa- Não sei se o meu amigo estará correcto (em-
receu-me vislum- bora a teoria pareça atraente), mas trata-se cer-
brar algo estranho. tamente de um problema de educação (ou da
– Fechou os olhos, falta dela). O que interessa é que quero conti-
primeiro numa quie- nuar a ser um estranho em terra estranha. Falo
tude meditativa e aos guardas do portão. Cumprimento os amigos
manteve-os fecha- da cozinha. Chamei até “Van Gogh da panifi-
dos à medida que cação”, a um padeiro da “Vasco da Gama” que
Tratava-se de um doente ainda novo, diabé- avançava a agulha. Em segundos a veia estava conheci, porque o resultado da sua arte alegrou
tico insulinodependente, muito obeso e já com canulada. O ambiente aliviou. Os medicamen- a minha vida. Agradeço a todos, mesmo os mais
doença vascular generalizada. As suas duas tos começaram a fluir. O paciente sentiu alívio simples, nem que seja só por existirem e, à sua
pernas haviam sido amputadas, pelas múltiplas e num sentido agradecimento voltou-se para o maneira, amenizarem o meu trabalho, a minha
oclusões arteriais que a arteroesclerose galopan- médico e agradeceu: existência. E sorrio, sorrio a todos, pois o sorri-
te tinha imposto, fazia já alguns anos. Passara a - Obrigado doutor, estava farto de sofrer… so ameniza tensões e traz acima tudo o que o
andar numa cadeira de rodas. Contudo e ape- Aquele agradecimento caiu-me fundo, na ser humano tem de bom. Sim, já fiz mesmo al-
sar destes sofrimentos, pouco tinha mudado nos alma vazia, de estrangeiro em terra estranha, em guns sacrifícios, como beijar idosas com bigo-
seus hábitos. Continuava a ter dificuldade em que amiúde existo. Pois vivemos cada vez mais des maiores que o meu e desejar bem a quem
controlar os doces, fumava mesmo um cigarro num mundo de gente orgulhosa, cheia de von- já me fez sentir mal…
ocasional. Quando conheci a sua história per- tade de exigir os seus direitos, mas pouco dada É que agradecer, sorrir e cumprimentar ele-
cebi como é verdade a mensagem dos pobres às delicadezas que aliviam a tensão social. Já é va-nos a alma, não a diminui, como parece ser
de África ou da Ásia esquecida: lá sofre-se pela normal não dizer Bom Dia, ou Boa Tarde (mui- cada vez mais crença vigente. Não vou longe,
penúria, aqui sofre-se pela abundância. O deno- tas vezes quando o fazemos em lugares públi- dirão muitos dos que lerem estas ingenuidades
minador comum, o sofrimento, esse está sempre cos olham-nos com ar estranho, como se fos- baratas. Enganam-se, já fui longe e espero con-
presente, mesmo naqueles que o disfarçam mais semos seres alienígenas). Se paramos para dar tinuar a subir…
ou menos bem. É o fado da humanidade… passagem na passadeira, também pouca gente Ia-me quase esquecendo…Muito Obrigado a
Havia sido admitido, naquele hospital central agradece – como se alguma da dignidade do todos, grandes e pequenos, que lêem estas histó-
de Lisboa, por um enfarte agudo do miocárdio circulante peão fosse beliscada pelo menear de rias, pacatas e simples. Tenham um Bom Dia…e
- pois a doença que lhe atingira as artérias das cabeça, que justificaria o incómodo do condu- juntem-se a esta legião de estranhos, nesta nossa
pernas, não lhe perdoava, também, o coração. tor. Também não agradecemos a quem nos ser- terra, cada vez mais estranha…
Sofria com a dor e o medo. Ora, o seu morfótipo ve pois “fazem aquilo para que lhes pagam…” Z
não permitia que lhe descobrissem facilmente dizem muitos. Sorrimos cada vez menos uns Doc
30 ABRIL 2008 U REVISTA DA ARMADA