Page 209 - Revista da Armada
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identificar um catalisador específico, o acto opção estratégica, que tem o apoio tímido CONSIDERAÇÕES FINAIS
individualizado que funciona como provo- da Europa, poderá vir a ser um erro estraté-
cação, que corresponde à “última gota”, ou gico profundo, já que a Rússia pertence à A eficácia do sistema de defesa antimís-
ao “pretexto próximo” do desafio. Consti- mesma matriz da civilização Ocidental, pela sil balístico é quase nula perante um ataque
tui uma acção pontual que desperta a hos- sua posição geográfica, pela abundância dos em larga escala, com mísseis com múltiplas
tilidade e que se traduz na tentativa de um seus recursos naturais e pela extensão imen- ogivas e muitos engodos.
actor coagir outro pela ameaça implícita ou sa das suas fronteiras. A Rússia é a primeira Os EUA estarão por certo a apostar no de-
explícita da força. Este desafio marca o iní- barreira contra o expansionismo chinês, que senvolvimento tecnológico que o projecto
cio da crise. não se deverá deter no Tibete e mais cedo pode fomentar. Lembra-se, a este propósito,
Caracterizando a situação actual, pode- ou mais tarde vai procurar expandir a sua in- que o GPS é um produto da “Guerra das Es-
mos dizer que existe um catalisador geral, fluência à Ásia Central, encontrando aí, ine- trelas”. Esta iniciativa não está a gerar mais
que é a divergência de interesses muito vitavelmente a Rússia. Se tal vier a aconte- segurança, pelo contrário está a conduzir
significativos que decorre da intenção nor- cer, o Ocidente (expressão lata que engloba a uma corrida ao armamento. Se bem que
te-americana de instalar um “escudo anti- as três Américas, a Europa, a Eurásia e uma entre os EUA e a Rússia não se perspective
míssil” na Europa, junto à fronteira com a parte significativa de África) deverá aliar-se uma crise internacional, que conduza ao
Federação Russa. Não podemos dizer que ao seu aliado natural que é a Índia (eterno conflito, já o mesmo não se pode afirmar
existe um catalisador específico, já que ape- rival da China, e logo, potencial parceiro do em relação a outras rivalidades, nomeada-
nas tem havido uma dialéctica de lingua- Ocidente) e apoiar a Rússia. mente entre a Índia e o Paquistão, ou entre
gem e de acções sem ultrapassar os limites A postura norte-americana está a gerar a Rússia e os seus vizinhos. Não é difícil
do aceitável pela outra parte. Estamos ain- força e poder entre defensores do movi- imaginar que as fricções ao longo da fron-
da longe da existência teira euro-russa resul-
de um desafio (provo- tem em confrontação.
cação) e também não Por exemplo, uma cri-
existe a elevada pro- se por causa da Ucrâ-
babilidade de guerra, nia, que quer aderir à
para se caraterizar esta OTAN, poderá origi-
situação como uma nar um conflito com a
crise internacional. Rússia; conflitos entre
Também há que o governo georgiano
atender à evolução e as forças separatis-
da conjuntura interna tas da Abkhazia ou da
da FR, com um novo Ossétia do Sul podem
Presidente, e dos EUA lançar um conflito mi-
onde se aproximam litar entre Tiblisi e Mos-
eleições presidenciais. covo. A Rússia já ame-
Nestas circunstâncias açou que reconheceria
é preciso saber se nos a independência des-
dois lados do Atlântico Desenvolvimento de uma Crise Internacional, retirado de PINTO, Luís Valença (1987) - Notas sobre a tes separatistas caso
teoria das crises; Pedrouços: IAEM, p.5.
acreditam que se está vingasse a indepen-
a caminhar para uma nova Guerra Fria. As mento geopolítico “neo-eurosianismo” que dência do Kosovo.
duas lideranças mantiveram em 2007 retó- defende que a única forma de contrariar a A Europa pós-moderna dificilmente pode
ricas exacerbadas, embora cada vez mais ingerência do Oeste no “estrangeiro próxi- voltar a confrontar-se com uma grande po-
contidas atendendo às eleições que se avi- mo” russo é permitir o acesso russo a mares tência, como no passado, e tudo fará para o
zinhavam. quentes. Este movimento liderado por Ale- evitar. Quanto aos EUA, qualquer mudança
Apesar da previsível oposição da FR não xander G. Dugin, com a simpatia de Putin, fundamental na sua política externa (pouco
é de antever a resistência, não-aceitação ou associa num espaço geopolítico comum as provável) terá que esperar pelas directrizes
oposição coerciva da FR em relação ao “es- potências continentais desde a Europa de da nova Administração. Todavia, um even-
cudo” antimíssil norte-americano. Não é as- Leste, Federação Russa, Cáucaso, Ásia Cen- tual confronto da Rússia com a Ucrânia ou a
sim espectável um choque entre o desafio e tral, Índia e o Irão. Das iniciativas mais re- Georgia irá abrir um mundo novo, ou talvez
a resistência que gera a confrontação e que levantes salientam-se o “Mercado Comum nos traga um velho mundo, uma reedição
alguns autores consideram ser o “coração” da Ásia Central” e a “Organização de Co- da história da Europa do século XIX. Muitos
ou “auge da crise”. Para se considerar uma operação de Shangai”. Há para já um ob- europeus ainda querem acreditar que esta-
crise bem gerida é preciso encontrar uma jectivo que é a promoção da “retirada das mos numa lógica estratégica dominada pela
solução de contento para ambas as partes, bases norte-americanas” que se encontram geoeconomia. Na verdade, ainda vivemos
sem que haja recurso à guerra. na Ásia Central, aproximando, deste modo, numa era em que geopolítica, competição
Em resumo, pode-se dizer que o projecto não só a FR e a China mas também a China, pela segurança, não foi purgada das Rela-
norte-americano de instalação de um “es- a Índia e o Irão. ções Internacionais.
cudo” antimíssil na Europa ainda não tem A Índia dá sinais de aproximação à FR, Neste ambiente de Volatilidade, Incerte-
as características de uma Crise Internacio- através de trocas comerciais e da encomen- za, Complexidade e Ambiguidade (VICA)
nal, mas há previsíveis acontecimentos que da de mais de 300 carros de combate, mas a balança de poderes está instável, o nos-
podem gerar o catalisador específico. Por não deixa de se aproximar também dos EUA. so mundo não é hoje mais seguro do que
certo, as desconfianças entre americanos e Notícias recentes, da agência Reuters, de 27 durante a Guerra Fria. Se adicionarmos à
russos vão aumentar e vão-se radicalizar as de Fevereiro de 2008, dão conta do interes- complexidade de relações as que vão ser
palavras e as acções. se da Índia e dos EUA unirem esforços no geradas pelo fim do petróleo, podemos
desenvolvimento do sistema de defesa anti- preconizar uma visão caótica de viragem
ANÁLISE ESTRATÉGICA GLOBAL míssil. Desta forma, a Índia não parece estar civilizacional.
preocupada com a edificação de um bloco Z
Uma análise estratégica oposta à iniciati- anti-americano mas sim na sua afirmação Armando J. Dias Correia
va norte-americana defende a ideia que esta enquanto potência regional. CFR
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