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HISTÓRIAS DA BOTICA (57)
O jovem marinheiro e o jardim florido…
O jovem marinheiro e o jardim florido…
Cerca de grandes muros quem te sonhas do. Lá conseguiu passear no pequeno jar- “flores são mais risonhas”, do seu jardim
Depois, onde é visível o jardim dim da sua casa. Pôde, finalmente, fazer encantado...
Através do portão de grade dada a pequena viagem à casa do filho, queria Senti-me, do mesmo modo, bem menos
Põe quantas flores são mais risonhas, poder ver a sua única neta…Mostrava-se corajoso do que ele. Sim, porque por vezes
Para que te conheçam só assim. agradecido por cada melhoria, valorizando desespero. Desespero pelo sofrimento que a
Onde nínguém o vir, não ponhas nada. estas em detrimento dos muitos incómodos vida me tem, amiúde, oferecido…Desespe-
que a sua situação clínica invariavelmente ro por achar que a dor e a opressão atingem
Fernando Pessoa, in “O Cancioneiro” acarretava... aqueles que, aparentemente, menos mere-
Um dia, cerca de quatro meses depois de ceriam…Desespero, enfim, porque gostaria,
ontacto muitas vezes com idosos (já nos conhecermos e de uma situação clínica ainda, de acreditar que na vida tudo vale a
não digo velhos porque a palavra bastante melhorada teve uma recaída gra- pena…e nem sempre consigo. O seu exem-
Cme parece agressiva). São estes ci- ve. O nosso jovem marinheiro constipou-se plo – e o de muitos que, nesta prática de
dadãos que mais frequentemente estão do- numa das suas actividades reconquistadas curar o corpo e a alma, vou conhecendo –
entes e recorrem, por imposição do destino – precisamente a jardinagem. Daí resultou, ajudou-me muito. Obrigaram-me a plantar
e dos muitos anos que a sua vida já leva, de forma galopante, uma pneumonia. Pre- o meu próprio jardim e a deixar sair dele as
ao médico, procurando alívio para os seus cisou de um internamento. Admiti que não flores mais bonitas, que lá crescerem.
muitos males…Esta é a história de
um desses jovens marinheiros – é
assim que a eles me dirijo, espe-
cialmente se têm mais de 80 anos
– que tinha, numa sucessão trá-
gica de acontecimentos, sofrido
uma série consecutiva de maleitas
cardíacas. O coração, degradado
na sua função principal (que é a
de bomba para a circulação), li-
mitava-lhe criticamente as activi-
dades mais simples: fazer a barba,
vestir -se sozinho, entre outras pe-
quenas tarefas tão essenciais para
o dia a dia. A cara apresentava um
arroxeado cianótico – um mau
sinal para quem sofre de doen ça
cardíaca. Dormia sentado, a falta
de ar impedia-lhe o repouso deita-
do. Franzi, quando pela primeira
vez o observei, o sobrolho inter-
no, já que os anos e a experiên-
cia me ensinaram a poupar aos
doen tes aquilo que não lhes pos-
so, imediatamente, aliviar…
Tratar um idoso desta idade, de
uma qualquer doença grave, é semelhante voltaria. Voltou. Trazia um sorriso límpido Este jovem marinheiro, pela sua coragem,
a cuidar de uma flor exótica e delicada. Se e afirmou em voz divertida: obriga-nos a todos a repensar os quatro pon-
lhe dermos muita água podemos afogá-la -Cá estou eu outra vez…Estou pronto tos cardeais da vida: o medo, a euforia, o
no tratamento, se lhe damos de menos do para voltar à vida…Afinal só tenho 28 anos amor e o ódio. Com ele é possível acreditar
precioso líquido, sujeitamo-la à sede. Co- - Um gracejo aos seus 82 anos... que o medo pode ser vencido, que a euforia
mecei, neste caso, como em muitos, com Foi então nesse dia, particularmente nes- deve ser escondida, que o ódio não vale a
doses baixas, dos muitos medicamentos de se dia, que me dei conta de quão agradável pena e, finalmente, que o amor (no seu senti-
que o jovem marinheiro viria a precisar. Ele era aquele homem. A sua coragem transbor- do mais lato, que é sinónimo de alegria pro-
no meio de toda esta dificuldade apresen- dava, parecia a brisa fresca no fim de uma funda) vencerá sempre, nem que seja apenas
tava sempre um sorriso rasgado e uma boa tarde de Verão escaldante. Dei-me conta, uma nota de rodapé no silêncio da vida.
disposição contagiante, como se a vida fos- ainda, que falava muito mais dos seus pra- Sorrio agora, afinal pensei que hoje nada
se apenas um segundo e, naquele preciso zeres, do que das suas limitações, das suas resultaria desta escrita. Surgiram, assim, de
segundo, ele, marinheiro das Áfricas e da doenças. Envergonhava muitos, que sem o mansinho, insinuantes, estas palavras peque-
Velha Goa da sua juventude, estava vivo e seu discernimento, ou a sua paciência, per- nas. Claro o jovem marinheiro, cada vez com
bem disposto, muito bem disposto… sistem na miséria e na tristeza. Lembrei-me, mais saúde, vai sorrir, ele também, ainda mais
Nesta relação de jardineiro, que se pre- então, do poema acima apresentado. Achei esta vez. Compreenderá, estou certo, que foi
tendia meticuloso e de paciente obedien- que este jovem marinheiro dava corpo per- esta a melhor forma que eu – ser triste e sem
te, sempre complacente e bem disposto, lá feito a um texto genial, da peça orquestra- jeito – imaginei para lhe agradecer...
fomos andando ao longo de meses e múl- da pelo génio de Fernando Pessoa. Afinal, Z
tiplas consultas. Lentamente foi melhoran- o seu segredo parecia ser expor sempre as Doc
30 JUNHO 2008 U REVISTA DA ARMADA