Page 230 - Revista da Armada
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firmam o envolvimento do piloto na referida como vimos, na costa ocidental africana, a meridional da ponta sul da ilha de S. Louren-
viagem, tendo os navios largado de Lisboa no norte do rio da Prata e na costa norte do Bra- ço, ou seja, com uma diferença de 5 graus
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dia 26 de Março . sil, também uma pequena ilha no Índico, a em latitude. Em nosso entender, não julgamos
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De acordo com a documentação coeva, sa- leste e na latitude sul da ilha de S. Lourenço , possível um piloto experiente cometer um erro
bemos inclusivamente que João de Lisboa se recebeu este mesmo topónimo. O que parece de 5 graus na avaliação da latitude , excepto
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encontrava doente quando esta armada che- testemunhar igualmente a inclusão do piloto se tal se tivesse ficado a dever a circunstân-
gou a Goa, a 7 de Setembro de 1518, talvez na viagem em que esta foi descoberta. cias excepcionais de grande debilidade física
devido às adversidades da navegação, ou, Apesar desta ilha na realidade nunca ter ou doença, eventualmente provocadas pelas
situação bem mais plausível, fruto da pobre existido, ainda assim ela aparece identificada, fracas condições de sanidade a bordo, talvez
dieta de bordo. Atendendo ao seu estado, foi com este topónimo, em grande parte da car- ainda agravadas por uma situação de mau
medicado por duas vezes «per tempo continuado.
mandado do doutor», pelo bo- Dito isto, consideramos que
ticário João Fernandes, como se uma das três hipóteses abaixo in-
constata da leitura do seguinte dicadas possa ter estado na ori-
documento: Arquivo CTEN António Gonçalves gem do achamento da ilha de
«Caderno das mezinhas que eu João de Lisboa:
Joam Fernandez butycario dei por 1. Possível confusão com a
mandado do s[e]ñnor gouernador ilha de Mascarenhas – actual ilha
pera os doentes desta armada […] Maurícia, cuja latitude é de 20º
a xbiij (18) dias do mês de Setembro 30’ S –, dadas as condições em
pera Francisquo Fernandez. Duas que eventualmente foi observada,
omças de xarope de sementes per quer por parte do piloto João de
mandado do doutor. E no dito dia Lisboa, quer por qualquer outra
pera Joam de Lissboa outro tanto em pessoa a bordo, incluindo um dis-
xarope como o de cima. […] It. a xxiiij cípulo seu, encarregado de fazer a
(24) dias do dito mez […] It. no dito observação da passagem meridia-
dia pera Joam de Lissboa duas omças na do Sol, no sentido de avaliar a
de xarope […]» . latitude da ilha avistada;
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João de Lisboa regressaria no- 2. Embora menos provável, não
vamente ao reino na armada que será igualmente de excluir a pos-
trouxe Lopo Soares de Albergaria, sibilidade do engano se ter ficado
tendo os navios chegado a Lisboa A ilha de João de Lisboa numa carta de Fernão Vaz Dourado. a dever à observação, em idênti-
em meados de Agosto de 1519. tografia portuguesa, pelo menos até ao século cas circunstâncias, da ilha de Santa Apoló-
Um mês depois, mais precisamente a 9 de XVIII. Aliás, segundo conseguimos apurar nas nia – actual ilha de Reunião, cuja latitude é
Setembro desse ano, o rei D. Manuel atribui- pesquisas efectuadas a este respeito, tudo in- de 21º 20’ S –, situada um pouco mais a sul
-lhe o cargo de «patrão da navegação», lugar dica que a presença da ilha de João de Lisboa e para oeste;
que havia ficado vago aquando da morte do se tenha igualmente mantido em toda a carto- 3. Por fim, e ainda em condições adversas
anterior titular, o piloto Afonso Rodrigues: grafia europeia até finais do século XVIII, altu- de mar e visibilidade, a probabilidade de ter
«[…] que [h]avendo nós respeito aos seruiços ra em que, com o advento e posterior dissemi- sido avistada a ponta sul da ilha de S. Louren-
que temos recebido de Joham de Lixboa piloto asy nação do cronómetro, inventado em 1762 por ço – actual ilha de Madagáscar, cuja extremi-
na nauegaçam da Imdia como em outras partes John Harrison (1693-1776), foi possível com- dade meridional se situa nos 25º 30’ S –, numa
[…] como a nosso seruiço compre e consiramdo- provar em definitivo a sua não existência. altura em que, segundo as estimativas do pilo-
-lhe fazer graça a merçee temos por to, o navio deveria estar mais para
bem e o damos daquy em diamte por leste. Nesta medida, não se tendo
nosso patram asy e per a maneyra registado qualquer erro na avalia-
que o [h]auia Afonso Roĩz que o dito CTEN António Gonçalves ção da respectiva latitude, ter-se-á
oficio tinha e se finou com todalas considerado tão só que estariam
priminecencias priuilegios e liberda- na presença de uma nova ilha.
des que a eledireitamente pertemcem, Em qualquer dos casos, não jul-
com o quall oficio queremos que te- gamos desprovido de plausibilida-
nha e [h]aja de temça oyto mill reaes de o facto da ilha João de Lisboa
cada ano […]» . 8 ter sido identificada em circuns-
Deste documento retiramos ain- tâncias adversas, conforme referi-
da a informação de que o piloto mos. Para esta nossa linha de ra-
passaria a auferir uma nova tença ciocínio contribuem em especial
anual, no valor de 8.000 reais. dois factores, encontrando-se am-
Brito Rebelo sugere que João de bos documentados. Sabendo que
Lisboa possa ter embarcado nova- em 1518 João de Lisboa chegou
mente para a Índia em 1520. Não Localização da de ilha João de Lisboa numa carta actual. a Goa doente, e se a isto juntar-
existindo qualquer indício na documentação Em nossa opinião, e levando em conta o mos a circunstância de na cartografia esta ilha
que nos permita concluir inequivocamente topónimo com que foi baptizada, parece-nos só aparecer, pela primeira vez, numa carta de
neste sentido, ainda assim, a avaliar pela sua que esta ilha imaginária terá sido igualmente c. 1519, pensamos que, não sendo possível
evolução profissional como piloto, considera- «descoberta» por um navio onde seguia João chegar uma conclusão definitiva, em conjun-
mos plausível que a sua presença na carreira de Lisboa, mas provavelmente, como vamos to estes indícios levam-nos a conferir um cer-
da Índia tenha sido uma constante até à data ver, em circunstâncias muito invulgares . to crédito à hipótese da ilha de João de Lisboa
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da sua morte. Como pudemos comprovar, em todas as ter sido «descoberta» no decurso desta viagem.
Cumpre ainda registar, que para além da cartas esta ilha fictícia surge sensivelmente na Além do mais, para que a extremidade sul da
existência de uma angra, um cabo e um rio mesma longitude da ilha Mascarenhas, que se ilha de S. Lourenço pudesse ser tomada como
com o seu nome, respectivamente situados, situa um pouco mais a norte, mas na latitude sendo uma nova e pequena ilha, seguramente
12 JULHO 2008 U REVISTA DA ARMADA