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A MARINHA DE D. JOÃO III (36)



                            De Governador a Vice-Rei
                             De Governador a Vice-Rei

               primeira preocupação de D. João  deles como entendesse. E, com tudo isso,  síveis e os terrenos impraticáveis a quem
               de Castro, logo que conseguiu apa-  devolveram os brancos cabelos da barba de  não conhece bem os acessos secos. Apesar
         A  ziguar Diu e expulsar todos os ini-  um homem de bem, que consideravam ser  de tudo, a população tinha preparado uma
         migos, foi reconstruir a fortaleza em condi-  um penhor desmesurado e, além do mais,  entrada triunfal para o herói de Diu, com
         ções que permitissem uma melhor defesa  desnecessário.                um cortejo de homenagem ao modo da ve-
         contra todas as intenções de Cambaia ou   Prosseguiram as obras da fortaleza, du-  lha Roma dos Césares. Do traje de D. João
         outro qualquer atacante. Recolheu toda a  rante toda a época seca do ano de 1546 e  de Castro nos dá conta o retrato existente
         artilharia abandonada, e mandou desfazer  princípios de 47, sob a direcção do próprio  na galeria dos Vice-Reis e Governadores da
         as construções que os mouros tinham feito  governador, enquanto D. Manuel de Lima  Índia, iniciada nessa mesma altura por ins-
         em frente à antiga muralha, com o intuito  saiu com cerca de trinta navios de remo,  truções suas expressamente dadas a Gaspar
         de ultrapassarem a vala e chegarem aos  para atacar todos os portos de Cambaia  Corrêa, que debuxou um esboço semelhan-
         baluartes. A futura cidade fortificada                                  te para as suas Lendas da Índia. Entendeu
         deveria ser mais espaçosa e alargada,                                   o governador que os seus antecessores
         com muros novos, baluartes mais altos                                   deveriam ter uma representação de des-
         e mais sólidos, e uma cava que a prote-                                 taque numa sala apropriada do paço,
         gesse “de mar a mar”, mais larga e funda                                numa postura que mostrasse a grande-
         que a anterior. A obra era, naturalmente,                               za do domínio português no Oriente. E,
         demorada e, apesar da grande quantida-                                  para isso, mandou pintar a sucessão de
         de de pedra que ali tinha sido deixada,                                 quadros que viria a ser continuada até à
         depois do combate, a reparação era de                                   actualidade e que constitui a espectacu-
         monta e importava em avultada quan-                                     lar galeria, ainda existente em Goa.
         tia, que o governador não tinha. Pensou                                   Durante a curta estadia na capital, re-
         em pedir dinheiro emprestado à cidade                                   cebeu notícias do Mar Vermelho, onde
         de Goa, mas sabia bem como os povos                                     enviou D. Álvaro de Castro, seu filho e
         encaravam estes empréstimos que o po-                                   companheiro de armas em lutas tão ter-
         der pagava mal e com artifícios sempre                                  ríveis como fora o descerco de Diu e as
         desvantajosos. D. João pretendia que a                                  guerras de Cambaia. Durante a mon-
         quantia fosse retirada directamente dos                                 ção seca de 1547-48, saiu com mais uma
         rendimentos da alfândega e, especial-                                   poderosa armada, que percorreu o Gu-
         mente, dos que incidiam sobre o rico                                    zerate dando luta aos inimigos de sem-
         negócio dos cavalos, mas queria deixar                                  pre. Quando chegou a Goa, em Abril de
         uma garantia sólida que não levantasse                                  1548, tinha novas d’el-rei dando-lhe gra-
         dúvidas aos munícipes. Mandou exu-                                      ças pelos êxitos alcançados, conceden-
         mar o corpo do seu filho, D. Fernando,                                   do-lhe mais três anos de governo (para
         morto na batalha de Diu, com o intuito                                  além dos previstos na nomeação), vários
         de entregar os seus ossos como penhor                                   benefícios financeiros e a alteração do tí-
         do empréstimo, mas não estavam, ainda,   D. João de Castro, quarto Vice-Rei da Índia.  tulo de governador pelo de Vice-Rei da
         em condições de ser retirados da sepul-  Gaspar Corrêa – Lendas da Índia  Índia. O quarto Vice-Rei, depois de Fran-
         tura. Num gesto que só pode ser com-                                    cisco de Almeida, Vasco da Gama e Gar-
         preendido dentro dos graves costumes e da  que permaneciam fiéis ao Sultão. A apro-  cia de Noronha. Escasseava-lhe, no entanto,
         simbologia da época, cortou os cabelos da  ximação da monção impunha, contudo,  a vitalidade e a saúde para usufruir de tais
         sua própria barba e remeteu-os junto com a  que se deixasse organizada a guarnição de  honrarias: em 6 de Junho de 1548 faleceu
         carta que escreveu à cidade, pedindo que os  Diu e que D. João regressasse a Goa. Assim  em Goa, na sequência de uma lenta agonia,
         aceitassem como caução da quantia neces-  aconteceu no mês de Abril, deixando cer-  acompanhada nos seus momentos finais por
         sária. D. João de Castro era, de facto, uma  ca de quinhentos homens de guarnição, as  S. Francisco Xavier. Desaparecia assim uma
         personalidade diferente de todos os que o  obras bem providas e avançadas, com di-  das figuras mais emblemáticas da fidalguia
         haviam precedido no cargo. Quase todos  nheiro para que todos fossem pagos, e uma  portuguesa do Renascimento. Foi um notá-
         eles foram homens corajosos e firmes na  esquadra de seis navios, sob o comando de  vel erudito, que integrou a tertúlia cultural
         acção. Houve-os com maior ou menor tac-  D. Jorge de Meneses, para que bloqueasse  do D. João III e do Infante D. Luís, superior-
         to administrativo, mais ou menos visão de  o Guzerate enquanto a estação o permitis-  mente dirigida por Pedro Nunes. Deixou
         governo e, apesar dos casos de corrupção  se. D. Manuel de Lima fora para a capita-  uma vasta obra escrita, que conta com uma
         já aqui relatados, sabemos bem que muitos  nia de Ormuz, onde se pressentia o avanço  adaptação do Tratado da Esfera, vários ro-
         foram honrados cavaleiros, com um interes-  dos turcos, que tinham ocupado a cidade  teiros náuticos e uma epistolografia riquís-
         se sincero em servir o seu rei. Mas não creio  de Baçorá e podiam ameaçar os interesses  sima. A dimensão dos seus feitos militares e
         que algum tenha conseguido obter a aura  portugueses no golfo Pérsico. E assim ficava  políticos não é mais do que a consequência
         de honradez, sinceridade e sentido de jus-  a Índia ordenada, podendo D. João de Cas-  óbvia de uma inteligência fina, dum espíri-
         tiça, que já rodeava este governador antes  tro regressar a Goa. Na capital esperava-o,  to de observador atento, do vasto saber e da
         da jornada de Diu, e que se consolidou nos  contudo, um problema que não deixava de  desenvoltura intelectual própria dos grandes
         anos sequentes. Naturalmente que os verea-  ser habitual: a tentativa do Hidalcão para  humanistas do seu tempo.
         dores de Goa reuniram a verba necessária,  criar instabilidade nos territórios circun-                Z
         acrescentando-lhe voluntariamente jóias e  dantes, aproveitando a estação das chuvas,    J. Semedo de Matos
         outros bens pessoais, para que dispusesse  quando os reforços são difíceis ou impos-              CFR FZ

         16  JUNHO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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