Page 234 - Revista da Armada
P. 234
A MARINHA DE D. JOÃO III (36)
De Governador a Vice-Rei
De Governador a Vice-Rei
primeira preocupação de D. João deles como entendesse. E, com tudo isso, síveis e os terrenos impraticáveis a quem
de Castro, logo que conseguiu apa- devolveram os brancos cabelos da barba de não conhece bem os acessos secos. Apesar
A ziguar Diu e expulsar todos os ini- um homem de bem, que consideravam ser de tudo, a população tinha preparado uma
migos, foi reconstruir a fortaleza em condi- um penhor desmesurado e, além do mais, entrada triunfal para o herói de Diu, com
ções que permitissem uma melhor defesa desnecessário. um cortejo de homenagem ao modo da ve-
contra todas as intenções de Cambaia ou Prosseguiram as obras da fortaleza, du- lha Roma dos Césares. Do traje de D. João
outro qualquer atacante. Recolheu toda a rante toda a época seca do ano de 1546 e de Castro nos dá conta o retrato existente
artilharia abandonada, e mandou desfazer princípios de 47, sob a direcção do próprio na galeria dos Vice-Reis e Governadores da
as construções que os mouros tinham feito governador, enquanto D. Manuel de Lima Índia, iniciada nessa mesma altura por ins-
em frente à antiga muralha, com o intuito saiu com cerca de trinta navios de remo, truções suas expressamente dadas a Gaspar
de ultrapassarem a vala e chegarem aos para atacar todos os portos de Cambaia Corrêa, que debuxou um esboço semelhan-
baluartes. A futura cidade fortificada te para as suas Lendas da Índia. Entendeu
deveria ser mais espaçosa e alargada, o governador que os seus antecessores
com muros novos, baluartes mais altos deveriam ter uma representação de des-
e mais sólidos, e uma cava que a prote- taque numa sala apropriada do paço,
gesse “de mar a mar”, mais larga e funda numa postura que mostrasse a grande-
que a anterior. A obra era, naturalmente, za do domínio português no Oriente. E,
demorada e, apesar da grande quantida- para isso, mandou pintar a sucessão de
de de pedra que ali tinha sido deixada, quadros que viria a ser continuada até à
depois do combate, a reparação era de actualidade e que constitui a espectacu-
monta e importava em avultada quan- lar galeria, ainda existente em Goa.
tia, que o governador não tinha. Pensou Durante a curta estadia na capital, re-
em pedir dinheiro emprestado à cidade cebeu notícias do Mar Vermelho, onde
de Goa, mas sabia bem como os povos enviou D. Álvaro de Castro, seu filho e
encaravam estes empréstimos que o po- companheiro de armas em lutas tão ter-
der pagava mal e com artifícios sempre ríveis como fora o descerco de Diu e as
desvantajosos. D. João pretendia que a guerras de Cambaia. Durante a mon-
quantia fosse retirada directamente dos ção seca de 1547-48, saiu com mais uma
rendimentos da alfândega e, especial- poderosa armada, que percorreu o Gu-
mente, dos que incidiam sobre o rico zerate dando luta aos inimigos de sem-
negócio dos cavalos, mas queria deixar pre. Quando chegou a Goa, em Abril de
uma garantia sólida que não levantasse 1548, tinha novas d’el-rei dando-lhe gra-
dúvidas aos munícipes. Mandou exu- ças pelos êxitos alcançados, conceden-
mar o corpo do seu filho, D. Fernando, do-lhe mais três anos de governo (para
morto na batalha de Diu, com o intuito além dos previstos na nomeação), vários
de entregar os seus ossos como penhor benefícios financeiros e a alteração do tí-
do empréstimo, mas não estavam, ainda, D. João de Castro, quarto Vice-Rei da Índia. tulo de governador pelo de Vice-Rei da
em condições de ser retirados da sepul- Gaspar Corrêa – Lendas da Índia Índia. O quarto Vice-Rei, depois de Fran-
tura. Num gesto que só pode ser com- cisco de Almeida, Vasco da Gama e Gar-
preendido dentro dos graves costumes e da que permaneciam fiéis ao Sultão. A apro- cia de Noronha. Escasseava-lhe, no entanto,
simbologia da época, cortou os cabelos da ximação da monção impunha, contudo, a vitalidade e a saúde para usufruir de tais
sua própria barba e remeteu-os junto com a que se deixasse organizada a guarnição de honrarias: em 6 de Junho de 1548 faleceu
carta que escreveu à cidade, pedindo que os Diu e que D. João regressasse a Goa. Assim em Goa, na sequência de uma lenta agonia,
aceitassem como caução da quantia neces- aconteceu no mês de Abril, deixando cer- acompanhada nos seus momentos finais por
sária. D. João de Castro era, de facto, uma ca de quinhentos homens de guarnição, as S. Francisco Xavier. Desaparecia assim uma
personalidade diferente de todos os que o obras bem providas e avançadas, com di- das figuras mais emblemáticas da fidalguia
haviam precedido no cargo. Quase todos nheiro para que todos fossem pagos, e uma portuguesa do Renascimento. Foi um notá-
eles foram homens corajosos e firmes na esquadra de seis navios, sob o comando de vel erudito, que integrou a tertúlia cultural
acção. Houve-os com maior ou menor tac- D. Jorge de Meneses, para que bloqueasse do D. João III e do Infante D. Luís, superior-
to administrativo, mais ou menos visão de o Guzerate enquanto a estação o permitis- mente dirigida por Pedro Nunes. Deixou
governo e, apesar dos casos de corrupção se. D. Manuel de Lima fora para a capita- uma vasta obra escrita, que conta com uma
já aqui relatados, sabemos bem que muitos nia de Ormuz, onde se pressentia o avanço adaptação do Tratado da Esfera, vários ro-
foram honrados cavaleiros, com um interes- dos turcos, que tinham ocupado a cidade teiros náuticos e uma epistolografia riquís-
se sincero em servir o seu rei. Mas não creio de Baçorá e podiam ameaçar os interesses sima. A dimensão dos seus feitos militares e
que algum tenha conseguido obter a aura portugueses no golfo Pérsico. E assim ficava políticos não é mais do que a consequência
de honradez, sinceridade e sentido de jus- a Índia ordenada, podendo D. João de Cas- óbvia de uma inteligência fina, dum espíri-
tiça, que já rodeava este governador antes tro regressar a Goa. Na capital esperava-o, to de observador atento, do vasto saber e da
da jornada de Diu, e que se consolidou nos contudo, um problema que não deixava de desenvoltura intelectual própria dos grandes
anos sequentes. Naturalmente que os verea- ser habitual: a tentativa do Hidalcão para humanistas do seu tempo.
dores de Goa reuniram a verba necessária, criar instabilidade nos territórios circun- Z
acrescentando-lhe voluntariamente jóias e dantes, aproveitando a estação das chuvas, J. Semedo de Matos
outros bens pessoais, para que dispusesse quando os reforços são difíceis ou impos- CFR FZ
16 JUNHO 2008 U REVISTA DA ARMADA