Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (2)

                                            Um cavalheiro

Ofilho, Oficial na nossa Mari-              amanhecer quotidiano que não lhe so-      económica deve ser acompanhada
           nha, pediu-me para consultar     negava segredos. Estava vivo. Mexia.      por equivalente evolução cultural, se
           o pai. O pai, cavalheiro digno,  É pessoa…                                 assim não acontecer a primeira será
que sempre trabalhou a terra na aldeia                                                sempre, frágil, fruste e fugaz…Tal-
da Beira Interior, onde nasceu, viveu          Pareceu-me então que muito do          vez seja esta a razão menos enunciada
e pretende - nas sua próprias palavras      que se passa em Portugal tem a ver        para explicar o atoleiro em que nos en-
- finar-se, estava descontente com o        com muita ausência daquilo que o          contramos.
incómodo de vir para Lisboa e ainda         nosso honrado cavalheiro tinha em
mais para a Base Naval de Lisboa.           demasia: a compreensão de quem foi,          Vendemos a alma, em grande par-
Estas confusões não eram para ele.          é e será sempre, uma pessoa impor-        te, ao dinheiro que provinha dos países
Afinal, só tinha vindo ao médico uma        tante e sabedora. Errámos certamente      mais a Norte e atribuímos a cultura
vez em toda a sua vida, por ocasião de      neste nosso mundo – que deixa velhos      aos programas de TV de consumo
“umas sezões” de um tempo tão anti-         à morte nos seus apartamentos solitá-     rápido – calorias vazias, que não en-
go como ele…                                rios. Falhámos por não saber recolher     chem o espírito. Já não parecemos
                                            a sua sabedoria a sua paz…                uma nação, mas um país formado por
    Tanto incómodo,
um médico, a pers-                             Portugal é de facto um país hetero-                          grupos de pressão
pectiva de exames,                          géneo. Nalgumas (poucas) gerações                               (lobbys – para usar
análises, picadelas,                        apenas passámos do analfabetismo,                               um estrangeirismo),
tudo parecia um                             que a terra impunha e que a política                            geridos pela máxi-
indesejável incon-                          obrigava, impregnado de uma singe-                              ma “salve-se quem
veniente moderno,                           leza dos costumes, que hoje nos pa-                             puder”.Perdemo-nos
desnecessário e im-                         rece quase infantil, para a internet, os                        nos entrementes da
posto pelo filho – que                      cartões de crédito, os carros de luxo,                          globalização e da
delicadamente ia pe-                        para a fraqueza dos costumes e para a                           imoralidade imposta
dindo desculpa…O                            solidão das almas. Falhámos, porque –                           pelas mais fortes de-
cavalheiro sorria e                         naquele momento percebi - perdemos                              sigualdades sociais
lá foi dizendo que se                       a alma daquilo que somos.                                       da Europa. Não nos
cansava, que dormia                                                                                         entendemos em qua-
com muitas almofa-                             Não nos conhecemos, melhor dito,                             se tudo o que é nacio-
das e que já não tra-                       não nos reconhecemos no país que                                nal e admiramo-nos
balhava a terra com                         somos, porque, admito profunda-                                 que a nossa atitude
a desenvoltura de                           mente, não cultivámos a memória da                              não comova os es-
outros tempos…                              nossa cultura, daquilo que os nossos                            trangeiros – a quem,
                                            antepassados fizeram e conheceram.                              insistentemente, pe-
    Era insuficiência                       Finou-se o enquadramento, nasceu                                dimos salvação…
cardíaca, um mal co-                        o desarranjo – nalguns casos visto
mum no nosso tempo, mas remediá-            até como modernidade a conquistar.                                  O nosso cavalhei-
vel. O que me impressionou foi a de-        Esquecemo-nos que toda a evolução         ro aí está a lembra-nos de que não é
senvoltura mental daquele cavalheiro                                                  preciso muito para atingir uma vida
de 97 anos, que ainda cavava e vivia                                                  longa. A ele, a quem o filho vai ler este
feliz e, até certo ponto, livre…Pareceu-                                              escrito, já estou a ver uma expressão
-me a anos-luz daqueles outros “jo-                                                   feliz dizendo:
vens” da mesma idade, que vivem nos
subúrbios de Lisboa, num apertado                                                        -“Olhó malandro do médico!” “Olha
duas assoalhadas, ou num asilo, lan-                                                  noquele deu em escreber” – e vai ser bom,
çados a um viver diário pautado pela                                                  porque vai sorrir e o sorriso, sei-o eu e
obnubilação das telenovelas, que lhes                                                 sabe certamente ele, é o segredo para
vendem um mundo “real”, que o seu                                                     uma vida longa…
analfabetismo nunca permitiu inteira-
mente decifrar…                                                                          Fiquei feliz, eu também, por o ter
                                                                                      conhecido. Um homem que conheceu
    O nosso cavalheiro, também analfa-                                                o sal da terra, que ainda cava, de um
beto, parecia estar (é possível que sem-                                              Portugal de outros tempos. Tempos
pre tenha estado) em harmonia com o                                                   em que havia esperança e força apesar
mundo. A sua vida, ainda que certa-                                                   dos sofrimentos. Tempos de gestos e
mente dura de trabalhos e anseios,                                                    ideias simples, escondidas, hoje, em
parecia ter-lhe preenchido o ser. No                                                  almas perdidas e vozes esquecidas, de
seu mundo sabia o que fazer, conhecia                                                 Velhos do Restelo, como eu. Oh! Que
os trilhos e os silêncios da terra, num                                               saudades tenho…do meu país…

                                                                                                                                 Doc

                                                                                             31REVISTA DA ARMADA • MAIO 2011
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