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O DIQUE DA RIBEIRA DAS NAUS
Eu estava a prestar serviço no Museu ocupação francesa e a retirada da Família Pereira, não tirando a paternidade da ideia
de Marinha quando, certo dia me Real, provocaram uma tal destabilização a Sarmento Rodrigues, propunha, num
desloquei às instalações da Admi- no país que, até o dique, que era uma fer- artigo publicado nos Anais do Clube Militar
Naval, meter a fragata D. Fernando e Glória,
nistração Central da Marinha e, quando ramenta fundamental para a manutenção no dique. Ninguém o ouviu. Todavia, se
estivéssemos atentos a esta sábia sugestão,
arrumava o meu carro, deparo com um dos navios, foi abandonado. A porta que aquele belo e histórico navio não teria sido
consumido pelo fogo.
enorme buraco no chão, ali mesmo ao meu abria e fechava o dique avariou e, como a
Acerca do dique,
lado. construção de uma porta nova só era pos- ainda quero lembrar
ao leitor que, em
“Que é isto?”, interroguei-me. sível usando madeira de carvalho, com 2002, numa tarde,
já ao pôr-do-sol, fui
Era, nem mais deixar o meu carro
no parque e ouvi
nem menos uma uma voz. Eu escrevi
um artigo sobre este
obra destinada a ins- assunto pois nunca
acreditei que as ve-
talar uma unidade lhas pedras falassem.
Mas era verdade! Eu
de ar condicionado ouvi. E a voz vinha
lá de dentro, das
e, ao ser escavado o entranhas da terra.
Era mesmo a voz do
local, tinha surgido Bartolomeu da Cos-
ta, que não parava de se lamentar por ter
uma construção de sido abandonada e esquecida a sua obra.
Eu ainda lhe disse que, em 1979, o arqui-
pedra que parecia os tecto José Tudela, da Câmara Municipal de
Lisboa, quis emendar a mão, apresentando
restos dum pequeno uma proposta para recuperar o dique, mas
o Bartolomeu não acreditou. Nem ele, nem
estádio romano. As ninguém. Todavia, eu sempre alimentei
uma esperança, pois a esperança é a última
pedras que se viam, coisa a perder. Contei este caso nesta Revis-
ta e até intitulei este meu artigo: “Uma Luz
eram, nem mais nem no Fundo do…Dique.” 2
Pois bem, recentemente, ao abrir o jor-
menos, do que parte nal deparo com uma notícia sensacional.
Em 30 de Julho de 2009, celebrou-se um
da doca seca – que protocolo, entre o Município de Lisboa, o
Ministério da Defesa Nacional e a Frente
ficou conhecida pelo Tejo, no âmbito do Programa de acção “Ri-
beira das Naus – Reencontrar o Tejo”, que
Dique da Ribeira das Arranjo aprovado para a área do antigo Arsenal da Marinha. constituiu o primeiro passo para, com o
Naus – a primeira envolvimento directo da Marinha, chegar
a uma solução consensual que foi vertida
obra deste tipo que se construiu, em Por- dimensões excepcionais que, na época, era para o protocolo de 24 de Novembro de
2010 entre a Câmara Municipal de Lisboa,
tugal, destinada a carenar os navios, para importada de Riga, actual capital da Letó- a Marinha e a Sociedade Frente Tejo, cujos
aspectos principais são:
lhes limpar o fundo ou reparar as obras vi- nia, o dique foi ficando inoperativo duran- a. A redefinição do perímetro vedado e
restrito, circundante das Instalações Cen-
vas. Deste modo, acabava-se com esse pro- te anos e anos. trais da Marinha;
b. O desaterro total do Dique do Arse-
cedimento artesanal e secular, que consis- O leitor não vai acreditar, mas o dique nal e a respectiva abertura à fruição pública
e eventual criação de um pólo museológico;
tia em encalhar (propositadamente) o na- vai manter-se nesta situação – apesar de c. A construção de “rampas varadou-
ro”, no máximo de duas, evocativas das
vio numa praia de areia e, jogando com as terem sido feitas algumas tentativas para antigas carreiras de construção do antigo
Arsenal da Marinha;
marés, efectuar aqueles penosos trabalhos. o reparar – até que, em 1842 (já se tinham
Comecei então a estudar a história do passado 35 anos de inoperacionalidade)
Dique, as suas glórias, mas também as suas um engenheiro holandês de nome Pie-
(incríveis) misérias, até que, um dia o enter- terszen, passa por Lisboa. Alguém devia
raram, sem uma palavra de reconhecimen- saber que, nos Países Baixos, os diques
to, sem, ao menos, uma lápide dizendo eram a sobrevivência dos habitantes dessa
“Aqui jaz o Dique da Ribeira das Naus”. nação, que tinha água por todos os lados.
Envolvi-me, de tal modo na história Perguntaram-lhe se ele era capaz de repa-
desta vetusta construção que escrevi arti- rar o dique e ele – seguramente – sorriu-se.
gos, fiz palestras e publiquei um livro que Pieterszen em 1845 já está em Lisboa,
– como, na minha idade, a imodestia é to- contratado para dirigir a reparação do di-
lerada – obteve o Prémio Teixeira da Mota, que, mas o apoio que a Marinha lhe dá,
uma distinção que lembra um amigo com deve ter sido tão exíguo, que o dique só
o qual, infelizmente, só convivi escasso volta a receber navios em 1850. Em suma:
tempo, mas que não esqueço. Não esque- demorou mais tempo o holandês a reparar
ço, tanto mais, pois certo dia – durante uma o dique do que o Bartolomeu da Costa a
conversa – me disse: construí-lo!
“Escreva o que acabou de dizer!” O dique passou a ter uma continuada
“Mas eu não sei escrever”, retorqui. operacionalidade até que, em 1948 já se en-
“Aprenda!” contrava aterrado, em virtude do Arsenal,
Assim o fiz e nunca mais parei. que se encontrava na Ribeira das Naus, ter
Para não obrigar o leitor a procurar os passado para o Alfeite, e os nossos arqui-
meus velhos escritos 1, digo-lhe que o di- tectos paisagistas, terem sido incapazes de
que foi construído graças ao dinamismo do traçar uma avenida sem passar por cima
ministro Martinho de Melo e Castro e ao do dique.
saber e tenacidade do brigadeiro Bartolo- Eu agora gostava de fazer uma viagem
meu da Costa, que tendo iniciado a obra, no tempo e desafiá-lo a si, meu paciente
em 1788, a terminou quatro anos depois. leitor, a também embarcar na minha nave.
O dique funcionou até 1807, até que a Vamos então até 1960, data em que Ramos
26 MAIO 2011 • REVISTA DA ARMADA