Page 26 - Revista da Armada
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O DIQUE DA RIBEIRA DAS NAUS

Eu estava a prestar serviço no Museu         ocupação francesa e a retirada da Família    Pereira, não tirando a paternidade da ideia
        de Marinha quando, certo dia me      Real, provocaram uma tal destabilização      a Sarmento Rodrigues, propunha, num
        desloquei às instalações da Admi-    no país que, até o dique, que era uma fer-   artigo publicado nos Anais do Clube Militar
                                                                                          Naval, meter a fragata D. Fernando e Glória,
nistração Central da Marinha e, quando ramenta fundamental para a manutenção              no dique. Ninguém o ouviu. Todavia, se
                                                                                          estivéssemos atentos a esta sábia sugestão,
arrumava o meu carro, deparo com um dos navios, foi abandonado. A porta que               aquele belo e histórico navio não teria sido
                                                                                          consumido pelo fogo.
enorme buraco no chão, ali mesmo ao meu abria e fechava o dique avariou e, como a
                                                                                                                        Acerca do dique,
lado.                                        construção de uma porta nova só era pos-                               ainda quero lembrar
                                                                                                                    ao leitor que, em
“Que é isto?”, interroguei-me.               sível usando madeira de carvalho, com                                  2002, numa tarde,
                                                                                                                    já ao pôr-do-sol, fui
Era, nem mais                                                                                                       deixar o meu carro
                                                                                                                    no parque e ouvi
nem menos uma                                                                                                       uma voz. Eu escrevi
                                                                                                                    um artigo sobre este
obra destinada a ins-                                                                                               assunto pois nunca
                                                                                                                    acreditei que as ve-
talar uma unidade                                                                                                   lhas pedras falassem.
                                                                                                                    Mas era verdade! Eu
de ar condicionado                                                                                                  ouvi. E a voz vinha
                                                                                                                    lá de dentro, das
e, ao ser escavado o                                                                                                entranhas da terra.
                                                                                                                    Era mesmo a voz do
local, tinha surgido                                                                                                Bartolomeu da Cos-
                                                                                          ta, que não parava de se lamentar por ter
uma construção de                                                                         sido abandonada e esquecida a sua obra.
                                                                                          Eu ainda lhe disse que, em 1979, o arqui-
pedra que parecia os                                                                      tecto José Tudela, da Câmara Municipal de
                                                                                          Lisboa, quis emendar a mão, apresentando
restos dum pequeno                                                                        uma proposta para recuperar o dique, mas
                                                                                          o Bartolomeu não acreditou. Nem ele, nem
estádio romano. As                                                                        ninguém. Todavia, eu sempre alimentei
                                                                                          uma esperança, pois a esperança é a última
pedras que se viam,                                                                       coisa a perder. Contei este caso nesta Revis-
                                                                                          ta e até intitulei este meu artigo: “Uma Luz
eram, nem mais nem                                                                        no Fundo do…Dique.” 2
                                                                                             Pois bem, recentemente, ao abrir o jor-
menos, do que parte                                                                       nal deparo com uma notícia sensacional.
                                                                                          Em 30 de Julho de 2009, celebrou-se um
da doca seca – que                                                                        protocolo, entre o Município de Lisboa, o
                                                                                          Ministério da Defesa Nacional e a Frente
ficou conhecida pelo                                                                      Tejo, no âmbito do Programa de acção “Ri-
                                                                                          beira das Naus – Reencontrar o Tejo”, que
Dique da Ribeira das   Arranjo aprovado para a área do antigo Arsenal da Marinha.         constituiu o primeiro passo para, com o
Naus – a primeira                                                                         envolvimento directo da Marinha, chegar
                                                                                          a uma solução consensual que foi vertida
obra deste tipo que se construiu, em Por- dimensões excepcionais que, na época, era       para o protocolo de 24 de Novembro de
                                                                                          2010 entre a Câmara Municipal de Lisboa,
tugal, destinada a carenar os navios, para importada de Riga, actual capital da Letó-     a Marinha e a Sociedade Frente Tejo, cujos
                                                                                          aspectos principais são:
lhes limpar o fundo ou reparar as obras vi- nia, o dique foi ficando inoperativo duran-      a. A redefinição do perímetro vedado e
                                                                                          restrito, circundante das Instalações Cen-
vas. Deste modo, acabava-se com esse pro- te anos e anos.                                 trais da Marinha;
                                                                                             b. O desaterro total do Dique do Arse-
cedimento artesanal e secular, que consis-   O leitor não vai acreditar, mas o dique      nal e a respectiva abertura à fruição pública
                                                                                          e eventual criação de um pólo museológico;
tia em encalhar (propositadamente) o na- vai manter-se nesta situação – apesar de            c. A construção de “rampas varadou-
                                                                                          ro”, no máximo de duas, evocativas das
vio numa praia de areia e, jogando com as terem sido feitas algumas tentativas para       antigas carreiras de construção do antigo
                                                                                          Arsenal da Marinha;
marés, efectuar aqueles penosos trabalhos. o reparar – até que, em 1842 (já se tinham

Comecei então a estudar a história do passado 35 anos de inoperacionalidade)

Dique, as suas glórias, mas também as suas um engenheiro holandês de nome Pie-

(incríveis) misérias, até que, um dia o enter- terszen, passa por Lisboa. Alguém devia

raram, sem uma palavra de reconhecimen- saber que, nos Países Baixos, os diques

to, sem, ao menos, uma lápide dizendo eram a sobrevivência dos habitantes dessa

“Aqui jaz o Dique da Ribeira das Naus”.      nação, que tinha água por todos os lados.

Envolvi-me, de tal modo na história Perguntaram-lhe se ele era capaz de repa-

desta vetusta construção que escrevi arti- rar o dique e ele – seguramente – sorriu-se.

gos, fiz palestras e publiquei um livro que  Pieterszen em 1845 já está em Lisboa,

– como, na minha idade, a imodestia é to- contratado para dirigir a reparação do di-

lerada – obteve o Prémio Teixeira da Mota, que, mas o apoio que a Marinha lhe dá,

uma distinção que lembra um amigo com deve ter sido tão exíguo, que o dique só

o qual, infelizmente, só convivi escasso volta a receber navios em 1850. Em suma:

tempo, mas que não esqueço. Não esque- demorou mais tempo o holandês a reparar

ço, tanto mais, pois certo dia – durante uma o dique do que o Bartolomeu da Costa a

conversa – me disse:                         construí-lo!

“Escreva o que acabou de dizer!”             O dique passou a ter uma continuada

“Mas eu não sei escrever”, retorqui.         operacionalidade até que, em 1948 já se en-

“Aprenda!”                                   contrava aterrado, em virtude do Arsenal,

Assim o fiz e nunca mais parei.              que se encontrava na Ribeira das Naus, ter

Para não obrigar o leitor a procurar os passado para o Alfeite, e os nossos arqui-

meus velhos escritos 1, digo-lhe que o di- tectos paisagistas, terem sido incapazes de

que foi construído graças ao dinamismo do traçar uma avenida sem passar por cima

ministro Martinho de Melo e Castro e ao do dique.

saber e tenacidade do brigadeiro Bartolo-    Eu agora gostava de fazer uma viagem

meu da Costa, que tendo iniciado a obra, no tempo e desafiá-lo a si, meu paciente

em 1788, a terminou quatro anos depois.      leitor, a também embarcar na minha nave.

O dique funcionou até 1807, até que a Vamos então até 1960, data em que Ramos

26 MAIO 2011 • REVISTA DA ARMADA
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