Page 16 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (25)

A primeira jornada de África
Muito cedo manifestou el-rei D. Se-
             bastião a vontade de passar a Áfri-  quotidianas, em festas públicas e jogos po-      Nessa altura já o rei preparava a sua
             ca, para combater os mouros, po-     pulares. Diria que a ascensão prematura –     própria ida ao Norte de África. Nomeara
                                                  “fez-se rei antes de saber que cousa era ser  D. António Prior do Crato para capitão de

dendo entrever-se nesse desejo o prenúncio homem” – o obrigou a uma aprendizagem Tânger, dotando-o de uma considerável for-
da tragédia de Alcácer Quibir. Historiadores da razão de estado, sem que soubesse con- ça militar, com um extensíssimo regimento,
houve que conseguiram entrever no con- trolar convenientemente as paixões da alma. e criando um governo no Algarve com a
junto de uma complexa situação nacional e O desequilíbrio entre estes dois factores foi a incumbência de preparar uma frota capaz
internacional os factores que despoletaram a constante do seu reinado.                          de levar uma força expedicionária às terras

fatídica expedição. Nenhum homem conse-           A vontade de ir a África combater os africanas. Em Agosto de 1574, na ribeira de

gue furtar-se à sua circunstância, e Portugal, mouros também decorre das condições em Lisboa, foi lançada à água uma galé real que,
na entrada do último quartel do século XVI, que a Índia vai esmorecendo no imaginário imediatamente, foi guarnecida com gente
era um país esgotado, sem saída fácil para os nacional, que a associa ao “gosto da cobiça de guerra, recebendo ordem para se dirigir
projectos ultramarinos em que se tinha em- e da rudeza”, dando lugar à pureza cava- a Cascais onde devia esperar pelo rei. Junta-
penhado. A coroa suportara todo o empe- leiresca do combate ao mouro da Berbéria. ram-se-lhe mais duas galés e partiram para o
nhamento na Índia com o monopólio do co- Tratava-se de um debate antigo na socieda- Algarve a 17 de Agosto. O rei apenas revelou
mércio das especiarias e outras mercadorias de portuguesa que, no tempo de D. Manuel, o seu destino e intenções quando já estava
orientais, mas a evolução dos                                                                   embarcado. Em Lagos estava

preços e a carestia de bens                                                                     fundeado um galeão e cinco

essenciais no continente euro-                                                                  caravelas, da armada do Es-

peu criou um défice crescente                                                                   treito, que receberam ordens

insuportável. E, a acompa-                                                                      para o acompanhar a África,

nhar o mau panorama, acres-                                                                     sem mais delongas. Apenas

cia que o Oriente se revelara                                                                   demorou o tempo necessário

um sumidouro de homens, a                                                                       para escrever à avó e ao Car-

delapidar, física e moralmen-                                                                   deal Infante, encarregando-o

te, as forças vivas do país. Diz                                                                da regência, e fazendo seguir

Camões que está a Pátria me-                                                                    cerca de uma centena de car-

tida “no gosto da cobiça e na                                                                   tas anunciando a sua decisão.

rudeza duma austera, apaga-                                                                     A nobreza precipitou-se no

da e vil tristeza”, expressando                                                                 seu encalço cumprindo o

o seu próprio desencanto e a                                                                    dever de acompanhar o rei

esperança frustrada que lhe                                                                     em tão temerária acção, mas

destempera a lira e enrouque-                                                                   a maioria dos fidalgos par-

ce a voz, cansada de “cantar                                                                    tiram sozinhos por falta de

a gente surda e endurecida”.                                                                    tempo para reunir a hoste

   Francisco Sales Loureiro A cidade de Tanger – Braunio, Civitates Orbis Terrarum (1572)       que gostariam.
– um historiador contempo-                                                                         Aportou a Ceuta ainda em

râneo que se dedicou ao estudo do reinado pendera para o Oriente e que, recentemente, Agosto e ali ficou até ao final do mês seguin-
de D. Sebastião – adianta ainda que o século se inclinava para os territórios vizinhos. Para te, dedicando-se à caça “com tal confiança
XVI português, e especialmente a sua segun- D. Sebastião, contudo, a ideia crescera de for- como se fora nos bosques de Almeirim”. Mas
da metade, foi um período de sofrimento, ma obsessiva e com descontrolada paixão.               não encontrou quem o quisesse defrontar

onde a vida quotidiana era feita de uma es-       Em 1572 foi nomeado capitão de Tânger e decidiu partir para Tânger considerando

treita convivência com a morte, suscitando Rui de Sousa de Carvalho: figura notável, a possibilidade de marchar sobre Larache
uma religiosidade doentia e, nalguns casos, com uma enorme experiência das guerras quando tivesse as forças necessárias. Demi-
uma enorme violência social. A existência é em Marrocos, que se notabilizara na defesa tiu D. António, por não estar satisfeito com a
frágil e a falta de esperança propicia rasgos de Mazagão em 1562. O primeiro grande re- sua acção militar, e passou os dias seguintes
temerários. E o rei não escapou a esta von- contro do novo governador, nas imediações numa euforia desordenada. Reunia ao acaso
tade de se imortalizar na glória de uma vida da cidade, dá-se a 21 de Setembro, resultan- com o conselho e actuava a seu belo prazer
efémera, bem presente nas mortes prematu- do numa significativa vitória. D. Sebastião, e sem regra, experimentando a volúpia do
ras do pai e da mãe. D. Sebastião subiu ao contudo, encarou-a como coisa de pouca perigo ou – como diríamos hoje – o prazer da
trono num momento dramático da História monta e, apesar de Rui de Sousa estar no adrenalina. De nada valiam os conselhos para
de Portugal – é verdade! – mas isso não o cargo apenas há três ou quatro meses, não que voltasse, tomando-os por cobardia e falta
sujeitou a qualquer determinismo histórico hesitou em acusá-lo de ser pouco activo na de empenho cristão. Dª Catarina ameaçou-o
circunstancial. As condições económicas guerra. Alvitrou que seria por causa do seu de que iria a Tânger para o trazer consigo, e a
e sociais do país são apenas estruturas em casamento com Dª Maria da Silveira, insi- força deste apelo desesperado (ou o peso da
interacção, num vasto sistema que integra o nuando que preferia “as delícias do thalamo humilhação que seria a presença da avó em
próprio soberano, e onde a sua vontade tem aos perigos da campanha”. O resultado des- Tânger) terá sido a razão mais forte porque
um papel fundamental. E toda a documen- ta injusta reprimenda foi a intensificação dos abandonou tão desvairada empresa. A 25 de
tação coeva dá testemunho de um carácter combates sem regra até ao desenlace fatal, Outubro embarcou no galeão “S. Sebastião”
impetuoso e instável que marcou algumas num combate imprudente onde defrontou que o trouxe de volta ao reino.
decisões do seu governo, as relações com a
família chegada e com os seus directos co-        uma força muito superior. Deixou a vida no    J. Semedo de Matos
laboradores, bem como algumas atitudes            campo de batalha, trespassado por “cento e                  CFR FZ
                                                  dez feridas”, segundo nos diz um relato.

16 DEZEMBRO 2011 • REVISTA DA ARMADA
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