Page 30 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (8)

A vida de marinheiro... e o Natal

Ao escrever estas palavras não             rir – passados tantos anos. Os mesmos       ender como todos os que partilharam
          consegui esquecer a proximi-     amigos que nos viram mais brancos que       embarques e a vida naval profunda
          dade do Natal (que até à sua     cal depois de provar o almoço duas ve-      me modificaram e moldaram o profun-
publicação não terá sido cancelado…).      zes, na mesma refeição…                     do do meu ser. Ora, agora que muitos
Este ano o Natal será, acredito, menos                                                 sentem estarmos no final de uma Era
abundante materialmente para muitos.          Encontro-me agora numa posição           – aquela em que outros tantos acredita-
O ambiente não predispõe à celebra-        de gestão, numa Unidade com muitos          ram que estavam num país rico – daqui
ção, nem à alegria…Mas, mesmo assim,       médicos, vejo-lhes nos olhos os mes-        afirmo que mantemos outras riquezas,
como vou tentar provar em mais “uma        mos anseios, os mesmos desejos. Tento       daquelas que só os justos valorizam e
destas histórias feitas a partir do nada”  explicar-lhes aquilo que em tempos eu       nem toda a carestia pode afastar.
– como um amigo apropriadamente            também percebi mal: que só quem pro-
apelidou estas crónicas –, ainda vale a    va do sal do mar, chega alguma vez a           Neste Portugal, que por vezes parece
pena celebrar. Ainda vale a                compreender a Marinha. Pois a arte do       sem rumo, nesta vida cada vez mais di-
pena acreditar…                            médico-naval está certamente na entre-
                                           ga, íntima e pessoal, procurando nunca                    fícil, ouso postular, que de-
   Os médicos militares – to-              descurar o seu mister principal, a capa-                  vemos acreditar em nós pró-
dos eles – passam a vida en-               cidade para curar… o corpo e a alma.                      prios. Temos que regressar
tre o “modo” militar e a vida                                                                        ao que realmente somos…
civil. Os outros médicos, não                 O que me liga à Marinha e, certa-                      apenas simples marinheiros.
militares, não compreendem                 mente, o mesmo acontece com muitos                        Terreno seguro, em águas
bem esta vida entre o mar e a              outros, são as pessoas que connosco                       safas que nos conduzirão
terra, entre a farda e a bata...           partilharam a experiência naval –                         certamente a melhores luga-
Muitos me perguntam, fre-                  intensa e irrepetível. Ora, neste Natal,                  res. Devemos – admito que
quentemente, como é a vida                 podem faltar algumas prendas, mas po-                     deveria ser esta a mensagem
militar, que aspectos atraen-              demos sempre celebrar os amigos. Ora                      deste particular Natal – ter a
tes tem? Ou ainda, o que vejo              esta partilha é um traço característico da                coragem e a humildade de
eu nesta vida de marinheiro?               nossa vida naval, que é independente                      assumir os valores morais de
Neste particular, poderia ha-              da hierarquia, é motivo de orgulho e,                     outros tempos, os mesmos
ver imensas respostas. Tan-                insiste-se, particularmente por ser Na-                   que criticamos a muitos por
tas como os médicos-navais                 tal, deve ser motivo de celebração…                       não assumirem…
e a sua diferente experiência
naval e sentimentos pesso-                    Estas amizades são – sei por experi-                       Hoje sinto-me um ho-
ais…                                       ência – difíceis de explicar a outros. Ad-                mem rico. Conheci, nesta
                                           mito que eu próprio demorei a compre-                     casa, pessoas boas e ho-
   A verdade é que, desde há                                                                         nestas. Pessoas que me
algum tempo, a resposta me                                                                           ajudaram a ser melhor e a
ocorre simples e escorreita. –                                                                       compreender melhor os ou-
O que mais gosto na Marinha                                                                          tros. Conheci Oficiais que
são os amigos. Os amigos                                                                             a, bordo, trabalhavam dia
dos navios, dos longos em-                                                                           e noite, a ponto de se afir-
barques, das Comissões nos                                                                           mar em tom de brincadeira
Açores, dos Cursos ditos de                                                                          (porque o sorriso é inerente
Guerra…mas cheios de amizades que                                                                    à arte de marinheiro), que
duram uma vida… Os amigos com que                                                      “davam mau nome à Marinha”, por
almoçamos no “garfo de oiro” (nome                                                     tanta entrega, muitas vezes no limiar
que, jocosamente, alguém teve a ousadia                                                do fisicamente tolerável. Muitos impu-
de atribuir a determinada messe naval),                                                nham, perante os olhos distantes, mas
ou num qualquer restaurante ainda mais                                                 atentos, do médico, um respeito facil-
fino e excelente, em noite de festa espe-                                              mente conquistado. De quase todos me
cial…                                                                                  tornei grande amigo…Ao longo desta
                                                                                       vida pude presenciar, e dei conta nes-
   Os amigos na Marinha são tudo, con-                                                 tas páginas, de inúmeros actos de en-
cordam certamente muitos dos pacien-                                                   trega, de marinheiros anónimos, que
tes e esforçados leitores que toleram                                                  não escolhem posto ou ocasião…
estas crónicas. Os amigos têm muitas                                                       A todos, todos eles, desejo daqui o
caras. Lembramo-nos deles porque esti-                                                 melhor Natal possível, com amizade e
veram lá, quando mais se precisa deles.                                                o calor de um abafo em noite de vento
Quando a doença nos aflige, quando                                                     Norte. Sem os amigos seríamos todos
estamos sós, ou pura e simplesmente                                                    menos pessoas. Sem eles não se com-
quando o nosso carro avaria…Os ami-                                                    preende a Marinha…
gos da Marinha são especialmente im-
portantes porque ainda nos fazem sor-                                                                                          Doc.

30 DEZEMBRO 2011 • REVISTA DA ARMADA
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