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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (8)
A vida de marinheiro... e o Natal
Ao escrever estas palavras não rir – passados tantos anos. Os mesmos ender como todos os que partilharam
consegui esquecer a proximi- amigos que nos viram mais brancos que embarques e a vida naval profunda
dade do Natal (que até à sua cal depois de provar o almoço duas ve- me modificaram e moldaram o profun-
publicação não terá sido cancelado…). zes, na mesma refeição… do do meu ser. Ora, agora que muitos
Este ano o Natal será, acredito, menos sentem estarmos no final de uma Era
abundante materialmente para muitos. Encontro-me agora numa posição – aquela em que outros tantos acredita-
O ambiente não predispõe à celebra- de gestão, numa Unidade com muitos ram que estavam num país rico – daqui
ção, nem à alegria…Mas, mesmo assim, médicos, vejo-lhes nos olhos os mes- afirmo que mantemos outras riquezas,
como vou tentar provar em mais “uma mos anseios, os mesmos desejos. Tento daquelas que só os justos valorizam e
destas histórias feitas a partir do nada” explicar-lhes aquilo que em tempos eu nem toda a carestia pode afastar.
– como um amigo apropriadamente também percebi mal: que só quem pro-
apelidou estas crónicas –, ainda vale a va do sal do mar, chega alguma vez a Neste Portugal, que por vezes parece
pena celebrar. Ainda vale a compreender a Marinha. Pois a arte do sem rumo, nesta vida cada vez mais di-
pena acreditar… médico-naval está certamente na entre-
ga, íntima e pessoal, procurando nunca fícil, ouso postular, que de-
Os médicos militares – to- descurar o seu mister principal, a capa- vemos acreditar em nós pró-
dos eles – passam a vida en- cidade para curar… o corpo e a alma. prios. Temos que regressar
tre o “modo” militar e a vida ao que realmente somos…
civil. Os outros médicos, não O que me liga à Marinha e, certa- apenas simples marinheiros.
militares, não compreendem mente, o mesmo acontece com muitos Terreno seguro, em águas
bem esta vida entre o mar e a outros, são as pessoas que connosco safas que nos conduzirão
terra, entre a farda e a bata... partilharam a experiência naval – certamente a melhores luga-
Muitos me perguntam, fre- intensa e irrepetível. Ora, neste Natal, res. Devemos – admito que
quentemente, como é a vida podem faltar algumas prendas, mas po- deveria ser esta a mensagem
militar, que aspectos atraen- demos sempre celebrar os amigos. Ora deste particular Natal – ter a
tes tem? Ou ainda, o que vejo esta partilha é um traço característico da coragem e a humildade de
eu nesta vida de marinheiro? nossa vida naval, que é independente assumir os valores morais de
Neste particular, poderia ha- da hierarquia, é motivo de orgulho e, outros tempos, os mesmos
ver imensas respostas. Tan- insiste-se, particularmente por ser Na- que criticamos a muitos por
tas como os médicos-navais tal, deve ser motivo de celebração… não assumirem…
e a sua diferente experiência
naval e sentimentos pesso- Estas amizades são – sei por experi- Hoje sinto-me um ho-
ais… ência – difíceis de explicar a outros. Ad- mem rico. Conheci, nesta
mito que eu próprio demorei a compre- casa, pessoas boas e ho-
A verdade é que, desde há nestas. Pessoas que me
algum tempo, a resposta me ajudaram a ser melhor e a
ocorre simples e escorreita. – compreender melhor os ou-
O que mais gosto na Marinha tros. Conheci Oficiais que
são os amigos. Os amigos a, bordo, trabalhavam dia
dos navios, dos longos em- e noite, a ponto de se afir-
barques, das Comissões nos mar em tom de brincadeira
Açores, dos Cursos ditos de (porque o sorriso é inerente
Guerra…mas cheios de amizades que à arte de marinheiro), que
duram uma vida… Os amigos com que “davam mau nome à Marinha”, por
almoçamos no “garfo de oiro” (nome tanta entrega, muitas vezes no limiar
que, jocosamente, alguém teve a ousadia do fisicamente tolerável. Muitos impu-
de atribuir a determinada messe naval), nham, perante os olhos distantes, mas
ou num qualquer restaurante ainda mais atentos, do médico, um respeito facil-
fino e excelente, em noite de festa espe- mente conquistado. De quase todos me
cial… tornei grande amigo…Ao longo desta
vida pude presenciar, e dei conta nes-
Os amigos na Marinha são tudo, con- tas páginas, de inúmeros actos de en-
cordam certamente muitos dos pacien- trega, de marinheiros anónimos, que
tes e esforçados leitores que toleram não escolhem posto ou ocasião…
estas crónicas. Os amigos têm muitas A todos, todos eles, desejo daqui o
caras. Lembramo-nos deles porque esti- melhor Natal possível, com amizade e
veram lá, quando mais se precisa deles. o calor de um abafo em noite de vento
Quando a doença nos aflige, quando Norte. Sem os amigos seríamos todos
estamos sós, ou pura e simplesmente menos pessoas. Sem eles não se com-
quando o nosso carro avaria…Os ami- preende a Marinha…
gos da Marinha são especialmente im-
portantes porque ainda nos fazem sor- Doc.
30 DEZEMBRO 2011 • REVISTA DA ARMADA