Page 27 - Revista da Armada
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aparece representada uma grande a dedução de que deveriam antes
ser pinguins. E notam que Heré-
terra contínua a sul do cabo da dia, em 1613, apresenta mesmo
Boa Esperança e, nela, aparecem
legendas que esses historiadores também uma legenda, nessa terra
austral, que diz «Portugueses. com
e jornalistas interpretam como artilharia. ano 1606». E o mesmo
devendo ser provas de que os
Portugueses, a caminho da Índia, Godinho de Herédia, em c.1615,
chama a esta terra «Pitacorum Re-
na sua grande curva ao largo do gio»… Que significa isso?
Cabo, teriam encontrado terras re-
ais e que essas terras seriam as do João Baptista Lavanha era o
mais conceituado cosmógrafo por-
continente antártico. tuguês dos fins do século XVI (na
Na verdade, essa representa-
ção é um facto, mas a explicação época da União Ibérica) e para o
atlas que em 1597-1612 coordenou,
pode ser muito mais simples: os destinado à Casa de Sabóia, utilizou
cartógrafos continuavam a repre-
sentar a mítica «Terra Austral» como colaborador Luís Teixeira,
o melhor cartógrafo português do
que, desde a Antiguidade Clássi- seu tempo (e pai dos depois tam-
ca, se julgava que existia do outro
lado do planeta (segundo as con- bém célebres cartógrafos portugue-
ses João Teixeira Albernaz I e Pedro
cepções dos «antípodas», de Ma- Teixeira Albernaz). De Luís Teixei-
cróbio) e que mesmo a partir de
1519-1522, depois da descoberta ra são conhecidos os intercâmbios
de informação, e influências mú-
do Estreito e da Terra do Fogo por tuas, com Ortelius e com o que de
Fernão de Magalhães, enraizou-se
ainda com mais força no imaginá- melhor então se fazia na Flandres.
Manuel Godinho de Herédia
rio geográfico dos ibéricos e eu- era um português do Oriente (e,
ropeus que então faziam as suas Manuel Godinho de Herédia, 1613. pelo lado materno, era filho de
navegações transcontinentais.
Um grande número de cartas e mapas, um caso de contra-informação geopolítica… uma princesa da Malásia). Conheceu bem o
simplesmente por rotina, continuou a ter em para o olhar do Imperador Carlos V (1). Índico de então e andou durante muito tem-
Os defensores da ideia de que estas ter- po empenhado em projectos de descobrimen-
contaessaideiadamítica«TerraAustral»,que
vinha do passado. Ela foi tradicionalmente ras representadas na cartografia eram reais, to de uma mítica «terra do ouro», algures para
repetidademapaemmapa,antesedepoisde e eram já as do continente antártico, vão no sul da Insulíndia… A pergunta que se coloca
Magalhães, que na sua passagem do Estreito entanto ainda mais longe na sua argumen- habitualmente é se essa terra poderia ser a
se deu conta da existência de terra para sul. tação e afirmam que em alguns desses mapas Austrália real, tal como hoje a conhecemos.
Tal «terra magalhânica» (a «Terra do Fogo») — nomeadamente num mapa anónimo por- Que fosse a Austrália, nesses anos iniciais do
foi identificada como devendo ser o princípio tuguês de c.1597, atribuível a Pedro Teixeira século XVII, até é possível; mas que pensar
da célebre “Terra Austral” e como devendo e João Baptista Lavanha, e também depois quanto à hipótese da Antártica…? Escusado
estender-se ininterruptamente para Oriente em vários mapas de Manuel Godinho de será dizer que é muito pouco credível a hipó-
(e assim fechar, dentro de si, unidos, o Atlân- Herédia nos primeiros anos do século XVII — tese de Herédia ou outros quaisquer portu-
tico Sul e o Índico… ambos juntos como um aparecem não somente vastas áreas de terra gueses terem então em 1606 desembarcado (e
grande «stagnon»). Essa inflexão levando consigo artilharia…) na
Antártica.
para Oriente já estava de resto Não há dúvida de que essa
sugerida na carta anónima por-
tuguesa dita “de Cantino”, em tal legenda, sobre os papagaios,
aparentemente tão estranha e
1502 (no seguimento da pouco tão sensacional, aparece mesmo
esclarecida expedição portugue-
sa de 1501 em que terá estado nesses tais mapas de Pedro Tei-
xeira e João Baptista Lavanha,
presente o florentino Américo em 1597-1612, e de Manuel Go-
Vespúcio e cujos limites mais
meridionais desde há muito são dinho de Herédia c. 1615-1622. E
mais: ela até aparece em muitos
objecto de grandes controvérsias outros…! Ela até aparece naque-
entre os historiadores). Depois,
por volta de 1507, o cosmógrafo le que é um dos mais célebres
(se não o mais célebre de todos)
português Duarte Pacheco Pe- exemplares cartográficos do sé-
reira continuou a afirmá-la no
seu texto conhecido como «Es- culo XVI (e de todos os tempos?):
o interessantíssimo e influentís-
meraldo De Situ Orbis»; e em Planisfério ("Typus Orbis Terrarum") incluído no famosíssimo atlas "Theatrum Orbis simo planisfério («Typus Orbis
1513 também aparece sugerida Terrarum" de Abraham Ortelius, de 1570. Terrarum») incluído no famo-
na pseudo-enigmática carta tur-
ca de Piri Reis (baseada em informações co- ao sul do Cabo da Boa Esperança mas tam- síssimo atlas «Theatrum Orbis Terrarum»
lombinas e portuguesas); e em 1519 aparece bém, nelas, uma legenda latina informando de Abraham Ortelius, de 1570… (2) O mais
totalmente explícita no célebre «Atlas Miller», que aquela era a «Região dos papagaios, assim famoso atlas da cartografia mundial… Aí já
de Lopo Homem, António de Holanda, Pe- chamada pelos portugueses, devido ao incrível ta- lá está, bem legível, essa tal legenda que diz
dro e Jorge Reinel. Os Portugueses deram-lhe manho que nela têm as ditas aves». Ora, como «Psitacorum regio, sic a Lusitanis appellata ab in-
a sua forma final e definitiva, que iria perdu- papagaios verdadeiros não poderiam obvia- credibile earum avium ibidem magnitudinem». E
rar por séculos na cartografia mundial. A ra- mente ali existir — naquela latitude e naquela aí a foram, portanto, certamente beber todos
zão por que o fizeram é hoje em dia clara: é longitude… —, tais defensores partem para os cartógrafos posteriores que continuaram
27REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 2011