Page 26 - Revista da Armada

nenhum foi encontrado com vida, apesar das de ruínas. Só soube da fotografia quando mi- Desolador, foi o facto do comandante, para
buscas efectuadas, percorrendo as prais ou nha mãe a recortou do jornal O Século e ma fugir à responsablidade do encalhe, ter inven-
usando embarcações. enviou de Lisboa. Apesar de não se ter conse- tado uma avaria no sondador, que mencionou
Entretanto, o Capitão e Oficiais, que tinham guido melhor reprodução, dá para confirmar no seu Relatório de Mar, arrastando com ele o
deixado o navio numa baleeira, desembar- esse inacreditável episódio e justificar a se- oficial telegrafista. Uma desculpa que, por ser
cam, na praia, perto de mim. “Há gente a guinte legenda, que acompanhou a imagem: inconsistente, não resistiu à contestação que
bordo?”, pergunto. Garantem-me que tinham Este é um dos mais impressionantes docu- lhes fizemos, acabando ambos, por confessar
sido os últimos a deixar o navio. Descanso, mentos a testemunhar os horrores vividos pe- que a avaria nunca existira. Não menos grave,
mas, entretanto, o Governador da Zambézia, los passageiros e tripulantes do cargueiro Save foi o facto do Comandante, ainda para fugir à
comandante Daniel Rocheta, sensível às coi- e por quantos, impotentes, assistiram à agonia responsabilidade da má navegação praticada
sas do mar, tinha-me enviado um avião, que do navio. Amontoados no bico da proa e sus- durante a pernada da Beira a Quelimane, ter
me poderia ser útil, para transporte de possí- pensos da corrente de uma das âncoras po- culpado o Imediato António Esteves Coelho,
veis feridos. Vejo o avião dar uma volta por dem distinguir-se os sete homens (rodeados quando este não se podia defender, por ter sido
cima do Save e aterrar na praia, a poucos pelo círculo) que durante quase vinte e quatro vitimado, ao tentar dar ar aos pobres passagei-
metros de mim. O piloto diz-me: “Há gen- horas, esperaram os socorros. Estes não deixa- ros intoxicados numa das cobertas. Indiciei-os
te a bordo!” “Não é possível!”, respondo eu, ram finalmente de chegar-lhes, graças ao hero- como possíveis arguidos. Outras faltas foram
acreditando nas palavras que ouvira do Capi- ísmo do Capitão-do-Porto de Quelimane que cometidas, como por exemplo, não ter havido
tão. “Que contradição é esta?” Na realidade, conforme noticiámos arriscou a vida para ar- o cuidado de pôr um oficial do navio – durante
estes náufragos não podiam ter sido vistos, tal rebatar à morte aqueles outros que pareciam o abandono do navio – a assistir ao arriar das
a posição em que se encontravam. Meto-me estar já condenados.” embarcações, das quais uma delas se virou,
no avião e sobrevoamos o Save. Alguns afri- O Almirante Sarmento Rodrigues, governa- resultando a morte de todos os passageiros,
canos estavam pendurados à proa do navio, dor de Moçambique, foi a Quelimane tomar por não saberem nadar e por não lhes terem
por não aguentarem a
temperatura da chapa. sido fornecidos coletes
Isto pelo facto do navio de salvação.
estar aproado ao vento e
o fogo, que ainda gras- Como as avarias no
sava, não atingir a proa, mar eram julgadas no
mas aquecia de tal for- porto onde fora feita a
ma a chapa do convés última matrícula da tri-
que os tais sobreviven- pulação do navio, nes-
tes só conseguiam resis- te caso do Save, coube
tir estando pendurados, esse procedimento à Ca-
sem tocar na estrutura pitania de Porto Amélia.
escaldante do navio. Ainda houve outros res-
Tornava-se imperioso ponsáveis, por avarias
salvar aqueles homens. a bordo do Save. como
De facto, umas horas aconteceu com quem
antes, eu tinha manda- autorizou o embarque
do averiguar, se haveria do excessivo número de
gente a bordo, mas, de- passageiros ou de pro-
vido ao estado do mar, dutos inflamáveis, ainda,
a embarcação não tinha O estado em que ficou o navio. por cima, mal estivados
e, naturalmente, a quem
conseguido aproximar-se do Save. Entretan- conhecimento desta trágica perda do Save e autorizou construir beli-
to, a força do mar abranda e embarcamos na entregar-me a medalha de Socorros a Náufra- ches que impediam o rápido acesso a um dos
lancha da Capitania, tendo ao leme o Piloto gos mas, para ser justo, no que respeita ao epi- ferros sobressalentes.
Nascimento, e levando a bordo, o Dr. Mou- sódio que acabo de descrever, quem merecia Foi juiz, em Porto Amélia, o 1º tenente An-
risca, médico dos Caminhos de Ferro e, entre a medalha era, sem dúvida, o Piloto Joaquim tónio dos Santos Gaspar. Todavia, eu – por já
outras pessoas, um atrevido fotógrafo. Quan- do Nascimento Silva, que, além de muito me ter deixado Moçambique – não tomei conheci-
do nos aproximámos da roda de proa do na- ter ajudado, conduziu a lancha da Capitania mento do teor da sentença, tendo apenas sabi-
vio, sete africanos atiraram-se de tacada para que permitiu o salvamento. do que a condenação foi feita com alguns dos
a embarcação.Tinham-se mantido nessa situ- Como já disse, fui designado para levantar o réus à revelia, dado que se tinham escapado
ação impossível, graças à perseverança dum auto de averiguações, o que fiz em Lourenço para o Brasil. Ficou, assim, em grande parte,
deles, uma praça destemida que conseguiu Marques, durante dois largos meses, para onde impune o maior sinistro marítimo acontecido
aguentar-se, dizendo, a ele próprio e aos seus tinham ido, igualmente, os sobreviventes. De- com navios portugueses nos últimos séculos.
companheiros,que o salto seria morte certa duzi que o encalhe, que foi a causa principal Triste recorde. Além dum navio perdido, que
por afogamento e que, sem dúvida, alguém desta tragédia, fora resultado de desinteresse só custa dinheiro, as baixas humanas foram, as
os viria buscar. Um chefe! Seu nome, já foi, do oficial de quarto, que, na pernada da Beira seguintes, seguramente – como atrás se disse –
certamente, esquecido mas não por mim: a Quelimane – devido a um excesso de rotina, as mais elevadas desde os naufrágios aconteci-
Chamava-se Brás Camacho. Quando o via, manteve o rumo habitual, sem considerar que, dos no tempo da Carreira da Índia:
durante o longo período que permaneci em nessa noite, soprava um vento SE com alguma - Tripulantes: de 54, faleceram ou desapa-
Lourenço Marques, para o levantar o auto, intensidade. Além disso, foi o marinheiro do receram 9;
tratava-o como o herói que tinha sido. Ele leme que, ao ver uma espuma branca, chamou - Passageiros: de 482, faleceram ou desa-
sorria, modestamente. o oficial de quarto, o que permite deduzir que pareceram 212.
A imagem deste episódio, que acabo de este não se encontrava na ponte. Era o próprio
narrar, foi obtida pelo tal fotógrafo atrevido, encarregado de navegação. Todavia, quando 
de quem não consegui saber o nome, para se apercebeu da situação já era tarde. O Save António Estácio dos Reis
lhe agradecer a chapa que deu vida a um caíu sobre um baixo muito antes do porto de
belo episódio que se destacou dum montão destino, que era Quelimane. CMG
estacioreis@netcabo.pt

N.R.
O autor não adota o novo acordo ortográfico.

26 ABRIL 2012 • REVISTA DA ARMADA