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COM O MAR NÃO SE BRINCA!

  O recente desastre do navio de cruzeiros Costa Concordia vem lembrar-nos que, quando andamos no mar, se
um pequeno descuido pode ter consequências graves, a transgressão das regras fundamentais é, por vezes, fatal.

  O acidente provocado pelo comandante (?) daquele navio de cruzeiros, veio lembrar-me – passados que foram
50 anos – a mais dolorosa perda, em vidas humanas, sofrida com um navio português, desde os calamitosos nau-
frágios acontecidos na Carreira da Índia.

Em Janeiro de 1960, fui desempenhar as          e se faria um novo esforço no preia-mar se-       portuárias de Lourenço Marques. Mas aqui,
     funções de Capitão do Porto do Chinde,     guinte. Entretanto, o Save pede uma embar-        ainda se cometeu uma outra falta que veio a
     seguramente, a mais atraente comissão      cação, de pequeno calado, para espiar um          ser grave e que resultou da construção de 68
de serviço da minha carreira de oficial de      ferro de reserva, pois não consegue pôr na        beliches sobre o porão Nº1, o que impediu
Marinha. Todavia, o Chinde não era mais do      água nenhum dos seus ferros. Mando largar,        a utilização dum ferro, ali guardado, após se
que uma aldeia situada num dos braços do gi-    para o local, o rebocador Linga-Linga tendo       terem perdido os do navio.
gantesco delta do Zambeze. A sua existência     a bordo o Piloto Nascimento e o patrão-mor.
era devido ao facto de ser um porto, onde os    Da Capitania da Beira é enviado o rebocador         Mas não param os descuidos neste infortu-
navios, iam carregar o açucar, produzido na     Macuti. Todavia, os rebocadores foram inca-       nado Save, como, por exemplo, os que dizem
Sena Sugar States, e que chegava ao Chinde      pazes de actuar, dado que não tinham altura       respeito a exercícios de postos de abandono.
em pequenos barcos de rodas, os únicos que      de água suficiente, devido o facto do Save, ter   Interroguei todos os tripulantes (mas não os
conseguiam navegar em segurança nos fun-        entrado – por força do mar e do vento – numa      oficiais) se era habitual, no navio, proceder-
dos baixos e variáveis do delta.                coroa de baixos, a 1,3 milhas da Ponta Linde      -se ao exercício de postos de abandono e,
A grande atracção                               (Chinde) e encontrava-se isolado, flutuando,      de todos eles, apenas dois, que estavam no
para o Capitão do Por-                          até que acabou por encalhar definitivamente.
to era ser o comandan-                                                                                                     navio há 10 anos, res-
te da lancha canhonei-                            Eu fiquei a conhecer a história deste grave                              ponderam afirmativa-
ra Tete, também ela de                          incidente, com grande detalhe, dado que fui                                mente. Não admira,
roda à popa e cuja mis-                         nomeado para levantar o auto de averigua-                                  assim, que durante as
são principal era su-                           ções, em Lourenço Marques, para onde se-                                   48 horas, que o na-
bir, anualmente, o rio                          guiram todos os tripulantes e passageiros e ali                            vio esteve numa situ-
Zambeze até à cidade                            permaneci cerca de dois meses.                                             ação de grande peri-
de Tete, uma navega-                                                                                                       go, não tivessem sido
ção a olho, dado que                              Todavia, neste navio, é preciso muito boa                                distribuídos coletes
não havia balizagem.                            vontade para encontrar decisões ou procedi-                                de salvação. Neste
Navegávamos entre                               mentos correctos. Em primeiro lugar, no na-                                caso, deduzi que tal
vegetação luxuriante                            vio, ainda no porto de Lourenço Marques,                                   foi devido a indiferen-
e dormíamos, com o                              cometem-se várias faltas gravíssimas que – o                               ça dos oficiais. Toda-
navio amarrado a uma                            leitor vai constatar – foram as causas da ex-                              via, admito que, se os
árvore, nos numero-                             plosão que o navio sofreu e do número ele-                                 coletes tivessem sido
sos postos administra-                          vado de mortes que aconteceram.                                            distribuídos, essa de-
tivos. No regresso de                                                                                                      cisão talvez originasse
Tete, ainda subíamos                              De facto, a estiva do material inflamável, foi                           uma forte perturbação
o rio Chire, para che-   O navio Save.          feita descuidadamente, nos porões, acabando                                que podia ter causado
                                                por a carga, de um deles, explodir, causando a                             conflitos, desencadea­
gar a Blantyre e cumprimentar as autoridades    morte instantânea de numerosos passageiros,                                dos pelos que não re-
do antigo Malawi exercendo uma política de      que estavam alojados na coberta, instalada        cebessem os referidos coletes. Tal situação
boa vizinhança. Um dos encantos desta via-      por cima desse porão. Quanto ao número de         resultava do facto de se ter metido, a bordo,
gem era poder levar, como passageira, a mu-     passageiros embarcados, tinha sido dobrado,       o dobro da lotação autorizada, portanto, os
lher do comandante.                             em relação ao estabelecido pelas autoridades      coletes só dariam, apenas, para metade dos
Apesar de todos estes encantos, quando                                                            passageiros.
vagou o lugar de capitão do Porto de Que-                                                           Esta falta viria a ter consequências imensa-
limane, mudei-me para uma cidade, capital                                                         mente graves, quando do abandono do navio,
da Zambézia, com um padrão de vida mui-                                                           pois quando as baleeiras foram para a água,
to aceitável. Mal eu sabia que iria voltar ao                                                     uma delas, devido a manobra incorrecta, vi-
Chinde para assistir ao mais trágico e dolo-                                                      rou-se e os passageiros perderam-se, por afo-
roso episódio da minha vida de marinheiro.                                                        gamento, apesar de, logo de seguida, ter sido
No dia 7 de Julho de 1961, recebi um reca-                                                        lançado ao mar tudo que pudesse flutuar, mas
do para atender, por rádio, uma comunicação                                                       que de nada serviu, dado que os passageiros
do navio mercante Save, da frota das Com-                                                         não sabiam nadar. Aliás, este grave incidente
panhia Nacional de Navegação, que fazia o                                                         talvez pudesse ter sido evitado, se, a manobra
serviço regular de cabotagem na costa de Mo-                                                      de pôr as baleeiras na água, tivesse sido diri-
çambique e que, na altura, navegava do porto                                                      gida por um oficial ou um graduado, como é
da Beira para Quelimane. Não conseguimos                                                          norma, o qual, teria sido o último a embarcar.
entrar em contacto com o navio. Mas, pouco                                                          Vamos voltar ao Save quando o deixámos
depois, um telefonema informa-nos de que o                                                        encalhado dentro duma coroa de baixos. To-
Save encalhara nas proximidades do Chinde,                                                        davia, é forçoso dizer que o navio foi enfiar-
que já tinham sido feitas duas tentativas para                                                    -se nessa maldita coroa de baixos, dado que
o safar, sem êxito, mas que tudo estava bem                                                       não foram coerentes, nem adequadas, as me-
                                                                                                  didas tomadas após o primeiro encalhe. A re-

24 ABRIL 2012 • REVISTA DA ARMADA
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