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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (32)
A jornada de Alcácer Quibir
No ano de 1574, D. Sebastião fez a sua o controlo dos portos do nordeste africano, e dia 2 de Dezembro de 1576, para se encontrar
primeira incursão no território afri- com a navegação e o corso islâmico fora do com o tio no dia 23, por perto do Mosteiro de
cano. Esteve por lá pouco tempo e Estreito de Gibraltar. Guadalupe, na Estremadura Castelhana. Dos
acabou por regressar ao reino, acedendo à Em 1574 morreu Mulei Abd Allah, sul- projectos que o jovem soberano português ti-
insistência de quase todos os conselheiros e tão de Marrocos, conhecido pela sua política nha, Felipe mostrou-se muito satisfeito, con-
outras figuras gradas, sabendo, talvez, que de resistência ao avanço e à influência turca siderando-os da maior importância, mas não
não tinha condições para continuar a campa- que crescera no Mediterrâneo. Era um ami- dizendo que sim (ou que não) a nenhum de-
nha que voluntariosamente tinha encetado. go dos cristãos – dizia-se. Devia suceder-lhe les: agradou-lhe a ideia do casamento, mas
Reembarcou em Tânger a 25 de Outubro e, a o filho, Mulei Mohamet (Mohammed el- diferiu a decisão e o anúncio para mais tarde,
2 de Novembro, entrava na barra de Lisboa, -Motawakkil), mas os seus tios afastaram-no com múltiplos argumentos; e sobre a guerra,
jantando em Xabregas com a sua avó Dª Ca- e obrigaram-no a refugiar-se em Espanha. elogiou o espírito voluntarioso do sobrinho,
tarina (Marinha de D. Sebastião (25)). Diz-nos Quem tomou o poder foi Abd el-Malik (Mu- mas não lhe pareceu que a mesma tivesse a
um testemunho coevo que voltou contrariado lei Maluco nos textos portugueses), cujas sim- urgência que a sua argumentação expressava.
e com vontade de regressar a África tão
breve quanto lhe fosse possível. Eram as posturas de dois monarcas mui-
Diz-se que o assaltava um fervor re- to diferentes na experiência governativa,
ligioso incontrolável, capaz de o impul- na astúcia diplomática e na ponderação
sionar a insensatas acções, que acabaram política. E desta diferença se percebem
por levar à perda do reino na sequência as dificuldades de D. Sebastião enquan-
da fatídica batalha deAlcácer Quibir. En- to governante: os seus argumentos eram
tendo eu que é uma justificação recorren- porventura justos e correspondiam a um
te e redutora. Muitos chefes militares fo- projecto louvável, e até coerente, mas li-
ram ardentes cristãos e não deixaram de dava mal com a marcha do tempo políti-
tomar decisões acertadas, guiadas pela co, sem capacidade para esperar ou para
ponderação e prudência. É certo que foi intuir o momento certo de cada acção.
uma figura perturbada, como tive oca-
sião de dizer anteriormente, mas não dei- Em Julho de 1577, o alcaide de Arzila
xou de conviver com um mundo que era entrega a cidade aos portugueses, e em
o seu, na qualidade de governante atento Dezembro é o próprio Mulei Mohamet,
a pormenores da política europeia e pe- o sultão deposto, que lhe oferece vassala-
ninsular, com projectos próprios e uma gem em troca de uma campanha militar
estratégia para alcançar os seus objecti- que o volte a colocar no poder. A mente
vos. Ninguém é apenas um obcecado do rei português ardia como pólvora e
ou visionário a agir por impulsos de ir- enviou uma embaixada a Castela para
racionalidade descontrolada, ao longo obter a ajuda de que falara em Guadalu-
de uma vida inteira. E aceitar estas justi- pe. Felipe deixara no ar a hipótese de lhe
ficações simplistas é negar a essência da dar 50 galés de combate e 5000 infantes,
História, onde os personagens são sobre- mas agora resistia com pretextos diver-
tudo humanos, cujo verdadeiro carácter Felipe II. sos e adiava qualquer decisão, sem que o
é preciso discernir. Sofonisba Anguissola – Museu do Prado. impaciente D. Sebastião compreendesse
o que se passava. Ingenuamente achava
Há alguns meses atrás, na Marinha de patias com os turcos eram conhecidas, tanto que a culpa da demora era da inépcia do
D. Sebastião (23), falava eu de um projecto mais que servira sob as ordens de Istambul. embaixador e exaltava-se. O tio acabou por
atlântico português, prometendo voltar a ele Temos notícia ainda que, por essa altura, cres- mandar dizer-lhe que precisava desses meios
mais tarde. Na verdade, tratou-se de recentrar ce a presença dos navios islâmicos no sul de para a defesa dos seus portos de Itália, e não
o Império no Oceano Ocidental, com pólos Portugal e na costa andaluza, com sobressal- podia ajudá-lo.Aconselhou-o a que não fosse
no Brasil, em Angola, nas ilhas do Golfo da tos para a navegação portuguesa. Em concre- e que entregasse a empresa a um chefe militar
Guiné e, naturalmente, em Lisboa. A empre- to sabemos que, em 1575, foram apresadas experiente, mas D. Sebastião não ouviu nada
sa de Paulo Dias de Novais é um episódio três embarcações berberes no Algarve e, em disso. Não ouviu nem compreendeu o que lhe
dessa nova política, que passava por uma re- 1576, o próprio D. Sebastião fez-se à vela, em diziam, porque a força da sua argumentação
novação moral ou por um retorno a valores direcção ao sul, para dar combate a uma fro- assentava num desejo muito forte que punha
enfraquecidos, entendidos como a fonte de ta de 13 galés turcas, supostamente avistadas as conclusões antes das razões, como sempre
uma prosperidade antiga a esfumar-se. É cla- por perto de Sagres. acontece nestas circunstâncias. Os dados esta-
ro o esforço para o desenvolvimento do Bra- Nesse mesmo ano, o rei envia um embaixa- vam lançados e, como em qualquer tragédia
sil, e a necessidade de o complementar com dor a Castela com a proposta de um encontro clássica, o herói caminhava inexoravelmente
a consolidação da presença na costa angola- pessoal com o seu tio, Felipe II. Pretendia dis- para o abismo e o sacrifício, mau grado os avi-
na, percebendo-se uma tentativa de criar um cutir duas questões que o próprio reputava de sos frementes do coro.Alcácer Quibir estava à
sistema económico assente noAtlântico. Mas muito importantes e de interesse nacional: o vista e não havia nada a fazer. Mas disso da-
esse sistema exigia um domínio claro das vias seu casamento com a infanta Isabel Clara Eu- remos notícia no próximo número.
marítimas, nomeadamente dos acessos a Lis- génia, filha primogénita do rei vizinho; e a
boa, ao Mediterrâneo e ao Norte da Europa. preparação de uma expedição contra o Norte
É nesta perspectiva que crescem as preocu- de África, de que a conquista de Larache seria J. Semedo de Matos
pações com a Berbéria, nomeadamente com objectivo determinante. Partiu de Lisboa no
CFR FZ
N.R.
O autor não adota o novo acordo ortográfico.
24 JULHO 2012 • REVISTA DA ARMADA