Page 31 - Revista da Armada
P. 31
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (22)
Os Cuidados Intensivos do Corpo e da Alma…
O próprio viver é morrer, porque não te- Sempre achei que se tratava de um am- acreditar e o desfalecer, entre a vida de cá
mos um dia a mais na nossa vida que não biente em que a dita frase de Fernando e a de lá… é que sempre me senti acom-
tenhamos, nisso, um dia a menos nela. Pessoa muito se adequava. Vi ao longo da panhado e em paz, nestes lugares de in-
vida muitas histórias que lhe dão corpo e tenso trabalho e sentimento. Lá mesmo,
HLivro do Desassossego, Fernando Pessoa substância. Vi um gestor de renome, ainda na noite profunda, as vozes, as caras, as
oje revi uma outra história em que jovem, falecer em 24 horas na sequência de lágrimas e os sorrisos têm pesos diferentes.
exponho a alma em desalento. Esta- um acidente de viação, afinal despoletado Talvez por isso grande número de páginas
va furioso com uma situação profis- por um enfarte do miocárdio. Ouvi, lá pelas do livro que escrevo continuamente, no
sional que se me deparou e que perturbou a 5 horas da manhã, a esposa desse homem sentir, foi inspirado em acontecimentos,
paz em que procuro estar. Decidi que não poderoso afirmar em pranto desesperado reais ou imaginários, que passaram de al-
seria essa a história que quero escrever. To- “afinal para que lhe serviu tanto trabalho, guma forma por santuários destes…Onde
das as histórias que – mal ou bem – nesta tanta coisa, tanto dinheiro…”. Vi um po- o Homem, ainda que frágil fisicamente, é
tribuna produzi procuraram ser positivas, lítico, ainda na ribalta, chegar à Urgência sempre grande de sentimentos…
isto é, afastadas tanto quanto possível de agi- de um grande Centro Hospitalar de Lisboa
tações, medos e revoltas (...que são estados desvalorizando uma dor que “ia e vinha”, Ora, uma das missões que me incum-
de alma comuns, mas pouco que afinal “não seria nada” e o “nada” cor- biram foi a de organizar os Cuidados
úteis quando se procura o responder a uma dissecção aórtica1. Soube Intensivos do nosso novo hospital. Sou
consenso, ou mesmo a sim- ser operado, sobreviveu, e algumas semanas
ples verdade…). depois lá escreveu, ao militar que o orientou, apenas cardiologista, não o
uma pequena nota de agradecimento (…da- intensivista que a instituição
Nestas ocasiões, procuro quelas que se guardam no saco fundo, mas mereceria. Apesar de tudo,
Cuidados Intensivos… da escondido, que todos temos e a que chama- decidi dar o meu melhor,
Alma. Esses só podem ser en- mos dever cumprido…). acreditando que os milita-
contrados no melhor médico res, todos os militares, de
de cuidados intensivos daque- Finalmente, lembro aqui a religiosa com todos os ramos, merecem
la área específica, nos seus doença dita fatal a que se vaticinaram alguns ter acesso a este benefício
tratados, nos seus poemas… meses de vida. Recordo sua atitude serena, – tão comum nos hospitais
nos livros de Fernando Pes- de aceitação e resiliência – que mantém ain- dos outros, nos hospitais
soa. Como exemplo, quando da hoje na paróquia de Lisboa, onde cola- dos civis. É um empreendi-
tenho um mau dia relembro a bora, pois os médicos tentam ajustar o fluxo mento duro, que em muitas
frase acima, que hoje decidi biológico da vida (prolongando-a…), sabem áreas põe a organização
aqui partilhar. Esta frase con- de cor quadros diagnósticos e os mais recen- do futuro hospital em teste.
tém duas verdades, que tam- tes agentes terapêuticos, mas também eles A saber, exige uma organi-
bém são muito importantes na não a controlam totalmente… É bom saber zação pesada, quer material
Medicina. A primeira é que a que existem milagres… pois todos, mesmo quer pessoal, com enfermei-
vida é algo frágil e sob todas todos, precisamos de acreditar neles de vez ros em grande número, com
as formas deve ser valorizada. em quando… diferenciação específica,
A segunda verdade, mais va- médicos de todos os ramos
liosa ainda, é que não a controlamos, nem na Por tudo isto, por este desassossego de e muitos médicos civis.
extensão, nem na qualidade… emoções entre o estar e o partir, entre o A todos se exige experiência
e uma dose, em proporções equilibradas,
A fragilidade da vida é (sabe o leitor atento) de exigência e encorajamento.
uma razão importante para fugirmos às ten- Espero ter a força e o engenho para levar
tações mais comuns: o lucro a todo o custo, a cabo tal empreendimento. Tal só será
a sede de poder e a agressividade de todas as possível com paz no espírito e um forte
formas. O facto de não controlarmos a vida, entusiasmo… Daquele que advém do en-
por outro lado, obriga-nos a fazer o melhor tendimento de quem somos e de onde vie-
possível pelos outros e a esperar de quem mos. Estamos num tempo histórico, muitas
nos rodeia o mesmo tipo de dignidade… vezes pelas piores razões, ele são as desa-
Só assim, acredito, a vida faz sentido. venças, os conflitos, os enganos, as pro-
messas por cumprir… Ousadamente, aqui
Estas duas verdades aplicam-se na mesma avanço que procurarei sempre fazer histó-
medida aos cuidados intensivos do corpo. ria, mas por motivos inversos. Procurarei
Todos os hospitais modernos têm uma sec- sempre o entendimento, a construção e a
ção assim, com algumas camas, num sítio amizade. Foi assim que fui educado…
especial cheio de máquinas estranhas, que
apitam, esguicham, bipam… à volta de um Doc
qualquer ser humano gravemente doente,
por doença ou acidente. Passei muitas ho- Nota:
ras, melhor dito, muitas noites em salas as- 1 Dissecção aórtica – situação clínica de extrema gravi-
sim, com doentes assim, particularmente em dade, que precisa de resolução (geralmente cirúrgica)
salas de cuidado intensivo coronário… emergente.
REVISTA DA ARMADA • ABRIL 2013 31