Page 27 - Revista da Armada
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cachos, poderem fumar um precioso cigarro profundidade não se atreveria a aproximar-se O Comandante Frutuoso era um camarada
e usufruir dos poucos minutos da luz natural sequer”. Largou um sorriso trocista e abando- constante na sua amizade, um militar dedica-
do Sol. Eis quando o meu cozinheiro, um ho- nou o palco. O Staff pediu-me então a mim do e íntegro que nunca esquecerei.
mem introvertido do Norte, sobe à ponte e me para comentar a ação. Eu levantei-me vaga- Acabo, assim, esta pequena narrativa de 20
faz um pedido estranho. Pede-me para dar um rosamente, um silêncio total, caras suspensas anos passados nos submarinos, de mais de
“guito”. Eu disse “o quê?”. “Um guito, Senhor das minhas palavras e gestos, aproximei-me do 28.000 horas de navegação e de 20.000 horas
Comandante”, responde ele. Eu com 37 anos, púlpito, a saborear cada passo, cada segundo, de imersão nestas máquinas extremas. Coman-
já com 12 de submarinos acedi, sabia que chegado lá, ajustei o microfone, passei a mão dei a Esquadrilha de Submarinos num período
aquele homem precisava mesmo de dar um pelo cabelo e olhei com ironia para o Comodo- difícil da sua renovação. Foram vencidos enor-
“guito”. Ele vira-se para a proa do submarino, ro, já sentado, e disparei: “Gostaria de lembrar mes desafios, só superáveis por ter comigo o
eleva-se na torre, com o ar a bater-lhe na cara, o Sr. Comodoro que, pela mesma ordem de apoio incondicional da Marinha e de um grupo
enche os pulmões e dá um grito lancinante, raciocínio, se os meus torpedos tivessem sido
do interior da alma, profundo, sonoro. Depois a sério, o Sr. Comodoro não teria comparecido de excecionais profissionais, que foram capazes
vira-se para mim, com ar sorridente, agradece a este debriefing, quanto muito faria essas ob- de passar as maiores vicissitudes. Ganharam o
e diz ”Chefe, estou finalmente aliviado” e des- servações a Deus todo-poderoso”. A sala saltou profundo respeito dos Alemães, dos aliados e
ceu outra vez calmo e tranquilo. como se de uma mola se tratasse, exultou com mostraram o melhor que existe em cada Por-
Muitas histórias teria para contar, dos velhos aquele Tuga que tinha posto o Comodoro na tuguês, a adaptabilidade, o profissionalismo e a
submarinos e dos novos, onde ainda naveguei linha, este mais vermelho que uma lagosta. Eu capacidade de sacrifício, esta fruto de uma ab-
um bom punhado de horas. Ficam-me só regressei à minha cadeira com a sensação de soluta abnegação. Ficam para sempre na minha
como memória negativa os quartos noturnos missão cumprida e com uma satisfação interior memória. Neste ano em que se comemoram
à superfície, a navegar no Norte da Escócia. intransmissível.
Deles recordo o sofrimento os 100 anos da Esquadrilha de
causado por um frio de rachar, Submarinos, e antes de terminar
o corpo enregelado, molhado esta breve narrativa, queria re-
cordar três submarinistas que na
até aos ossos, o passar lento dos minha muito modesta opinião
minutos, o fustigar constante do
vento, da chuva e do mar, que foram decisivos para o sucesso
nos parecia querer engolir a da continuidade dos subma-
cada vaga. A escotilha fechada
para o interior para evitar que rinos: o VALM Conde Bagui-
a água entrasse no submarino, nho, no seu apoio inestimável
o isolamento e a desolação de na fase de transição, o CALM
um horizonte ameaçador, céu Álvaro Gaspar, no arranque do
negro e um mar pintado de es- processo de substituição dos
puma branca, com o coração submarinos, e o Comandante
apertado sempre que o raio do Brites Nunes, na fase de defini-
ção de requisitos e na transição.
submarino penetrava a vaga Todos me apoiaram sempre ao
em vez de a galgar. Mas foi aí
que realmente me tornei mari- longo da minha carreira, com
nheiro. os seus conselhos, amizade e
Mas não posso deixar de
contar só mais duas histórias, CMG G. Melo e CFR Frutuoso, a beber água do mar retirada a mais de 400 mts, Tridente 2009. camaradagem.
Há cerca de dois anos, foi
uma de glória e uma de dor absoluta. A história triste é que logo após a viagem
Num grande exercício naval do Reino Uni- inaugural do Tridente em 2010, o coman- tempo de dizer adeus a uma vida nos subma-
do, o JMC (Joint Maritime Course), a norte da dante, Capitão-tenente Frutuoso, adoeceu rinos, cheia, a uma paixão desde o primeiro
Escócia, ataquei o porta-aviões Inglês seis vezes com um cancro terminal. Perante o dilema de instante e de saber deixar que outros levem
seguidas, sem reação, escapando a todos os vermos esgotado o período de garantia, sem a partir de agora a flâmula da “Quadrilha” 3,
esforços dos seus escoltas para o protegerem podermos testar o novo submarino, foi deci- com a honra e o sentido de servir que está na
e para me contra-atacarem. Foi um pequeno dido que eu embarcasse no Tridente e reali- roda de leme dos nossos navios: “APátria hon-
brilharete. No fim do exercício, já em terra, a zasse todos os testes até se conseguir treinar rai que a Pátria vos contempla”.
meio de um debriefing gigantesco, num anfi- e selecionar um novo comandante. Antes de
teatro repleto com mais de 300 oficiais de to- um dos períodos de mar, o Comandante Fru- H. Gouveia e Melo
dos os navios e aeronaves participantes, o staff tuoso foi despedir-se de mim à Esquadrilha de CMG
chamou o inimigo à sala, nós, os comandan- Submarinos. Não me apercebi na altura que ti-
tes dos submarinos. Entrámos no meio de um nha sido um até sempre. Passados uns dias fui Notas:
forte sapateado e de estridentes assobios. Era a para o mar com o Tridente, onde comemorei 1 Snort – é um período em que o submarino, estando
à cota periscópica a carregar as suas baterias com
tradição, nós os seus insidiosos inimigos e eles os meus 50 anos, em imersão. Nesse mesmo os diesel-geradores em funcionamento, está mais
os nossos alvos. Sentaram-nos numas cadeiras dia recebi pela radiodifusão um sinal codifica- vulnerável à deteção, o que requer uma vigilân-
de pau no palco, virados para a plateia, como do, só para mim, a comunicar-me que o Co- cia ao periscópio constante, muito cansativa para
meninos mal comportados. Passaram então os mandante Frutuoso tinha acabado de morrer. quem a faz.
slides com a ação do Delfim nos seis ataques Regressei a terra, por ordem superior, para que 2 Alerta tático – é a manobra que se executa estando
realizados ao porta-aviões Inglês. Chamaram a guarnição homenageasse o seu comandante ao Snort, após a deteção de um perigo imediato,
de seguida o Comodoro Inglês ao palco, Co- acabado de falecer. Atracámos dois dias para que consiste em interromper essa operação e mer-
mandante da Força de superfície e do porta- as cerimónias fúnebres e voltámos ao mar gulhar de emergência para os 70 metros com 15˚de
caimento negativo e à máxima velocidade operacio-
-aviões, para comentar a ação. Ele, no seu ar para muitos mais dias de missão, com o co- nal disponível.
pomposo e snobe, como só os Ingleses sabem ração cheio de dor. Hoje, olhando para trás,
ser, disse num Inglês Oxfordiano: ”Isto só acon- não sei onde fui buscar dentro de mim a for- 3 Quadrilha – Termo carinhoso e jocoso com que os
teceu por ser um exercício, porque se fosse a ça anímica para superar a dor que senti, que militares das outras Esquadrilhas chamam a Esqua-
drilha de Submarinos, por esta ser a mais antiga e
sério, o Delfim ao ouvir as primeiras cargas de a guarnição sentiu, que a Esquadrilha sentiu. com um espírito de corpo fortíssimo.
REVISTA DA ARMADA • ABRIL 2013 27