Page 26 - Revista da Armada
P. 26
UMA VIDA NOS SUBMARINOS
Voluntariei-me para os submarinos
com 25 anos, em 1985, após a Escola ção e nevoeiro que a água tinha feito ao entrar, uma luz”. Não hesitei, pois pensei o pior, decidi
Naval e após o meu primeiro ano de o Comandante decidiu ir devagar para baixo arriar eu próprio o periscópio, dar o alerta táti-
Guarda-Marinha, onde fui imediato no NRP outra vez, para investigar a origem da entrada co1 e mergulhar à máxima velocidade para os
Save, um navio patrulha. de água. E assim, com o navio num silêncio 300 metros, manobrando desesperadamente
Conheci gente fantástica nos submarinos, gente sepulcral começou este a mergulhar. Aos 120 a fim de evitar um ataque por cargas de pro-
única, autênticas personagens de ficção. Todos metros um alarme de incêndio nos motores de fundidade, ou torpedos. O Oficial estava apo-
com uma dose de loucura salutar, dedicados e propulsão, a água salgada que tinha entrado plético, não conseguia explicar-se bem. Já com
com uma resiliência a toda a prova. Vou pois originara curto-circuitos nos quadros elétricos o comandante acordado e sem indicações de
contar alguns episódios da minha passagem do compartimento. Mais uma emergência, armas largadas na água sobre nós, resolvemos
por estas máquinas extremas onde o silêncio e disparados outra vez para a superfície que nem ir à cota periscópica, para percebermos o que
a discrição são a essência do “negócio”. um foguete e desta vez sem paragens. Depois, se passara. Lá chegados, descobrimos com es-
já à superfície combatemos o incêndio que panto que uma embarcação rápida, das que
Entrar nesta família unida, diferente, tinha os foi rapidamente extinto. O Coronel abanava faziam o tráfico de droga e armamento entre
seus rituais iniciáticos. Lembro-me, no meu pri- a cabeça incrédulo, com os olhos esbugalha- Montenegro e a Itália, perscrutava a superfície
meiro embarque, do Comandante me chamar dos, com um olhar de anteontem. Quando nos da água com um holofote, eventualmente a
à ponte de navegação e me perguntar: ”Ó Sr. procurar algo que tinha deixado cair ao mar.
Tenente, que está o submarino a fazer agora?” CO G.Melo, após 31 dias de imersão, 1997. Só aí percebemos que o Oficial, na sua rotina
Eu, ainda aluno, olhava para todo o lado à pro- de vigilância periscópica, contra meios aéreos
cura da resposta certa e nada me ocorria que sentámos à mesa a discutir se continuávamos a inimigos, fora encadeado pela luz do holofo-
não fosse óbvio. Lá respondi que navegáva- missão, ou se regressávamos à Base, ele só di- te da lancha de contrabando, tendo pensado,
mos à superfície no “estado de navegação”. O zia: ”p… vocês são todos malucos, ou têm uns legitimamente, que estava perante um ataque
Comandante, com a brisa a fustigar-lhe o rosto, t… de aço, mais negros que este submarino”. eminente de um helicóptero jugoslavo com
sorriu e com uma cumplicidade especial disse- O comandante era o então CTEN Silva Pauli- este a confirmar a nossa posição, com o seu
-me: ”Engana-se, Sr. Tenente, o que fazemos no, mais conhecido entre gente próxima pelo holofote, antes de largar as cargas de profun-
neste momento, é o que o lobo faz, prepara- índio. Com o Comandante Paulino aprendi a didade, ou torpedos. Muito nos rimos depois,
mo-nos para caçar no vasto Oceano…”. Olhei ser “cool”, como diziam os Ingleses dele com mas do susto não nos livrámos. Comandava o
para ele, eu do interior da torre, ele montado profunda admiração, pois só ele era capaz de Delfim o então CTEN Silva Crespo, um gran-
no mastro snort, corpo exposto aos elementos, no maior stress enrolar um cigarro com uma só de camarada que conseguia retirar de todos o
com a bandeira Portuguesa a tremular atrás, e mão, lamber o papel e colocá-lo na boca sem melhor que tínhamos para dar.
aí, nesse momento, tive a certeza que esta seria interromper a sua tarefa nem perder a concen-
a minha vida, que era ali que queria estar. Esse tração. Noutra ocasião em patrulha, em plena guer-
Comandante, o atual VALM Conde Baguinho, ra fria, era eu imediato do Comandante Costa
foi sempre um exemplo para nós que tivemos Uma outra vez no Adriático, em plena guerra Andrade, oficial que muito me ensinou com a
o privilégio de conviver com ele, o Bago, da secessão da ex-Jugoslávia, meados da dé- sua extraordinária intuição tática, quando ao
como lhe chamavam os mais próximos. cada de 90, numa patrulha próxima da costa, pôr-do-sol, ao snort2, um dos oficiais de quar-
em frente a ”Kotor Bay”, a principal base na- to deu o alerta tático por avistamento de um
Ainda aluno, no NRP Delfim, embarcámos val jugoslava, estava eu de bordada, à noite, periscópio. O Comandante manobrou ener-
um convidado do Comandante, um Coronel exercendo as funções de auxiliar direto do gicamente para evitar uma colisão iminente
do Exército, um homem da Guerra de África. Comandante para aquela missão específica, tentando colocar-se em posição vantajosa de
Ao Sul do Espichel entrámos em imersão, num quando vejo o oficial de quarto, ao periscópio, perseguição ao contacto. No entanto, já em
primeiro mergulho de teste até aos 300 metros gaguejar, com um ar de terror, sem conseguir imersão, nada detetámos. À noite, ao jantar,
de profundidade. Aos 180 começou a entrar falar nada, por mais que eu lhe berrasse: “o que todos os Oficiais gozavam com o camarada
água na propulsão e alguém gritou “veio de é, p..., o que é?”. Só conseguiu dizer “uma luz, que tinha avistado o periscópio, acusando-o de
água na propulsão”. Foi o suficiente para que ter inventado um periscópio para interromper
toda a guarnição, de um pulo, reagisse rápida e o snort… malandrão. Passámos a chamar-lhe o
ordeiramente, como se duma rotina se tratasse. “sunset periscope”. Não é que no dia seguinte
Foi enviado ar a todos os tanques de lastro para detetámos na área um submarino nuclear da
aliviar o peso do submarino, dado caimento ex-URSS. Nunca mais o calámos… massacrou-
positivo de 35˚ e colocados motores a toda a -nos daí para a frente. Ao longo da minha vida
potência para fazer o escape à máxima veloci- nos submarinos, encontros desta natureza, com
dade em direção à superfície, pois o que estava passagens perto, e a ver periscópios, acontece-
em causa era nada mais nada menos que a sor- ram-me diversas vezes, com Russos e não só…
te do submarino e da sua guarnição. O Coro- Já eu comandava o Barracuda e o navio
nel ficou atónito, ansioso, enquanto todos nós estava a fazer a missão mais prolongada até
fazíamos os procedimentos de emergência. Aí hoje feita pelos nossos submarinos, 31 dias
aos 90 metros de profundidade, a água deixou consecutivos de mar, quando avistámos, no
de entrar em resultado da diminuição da pres- banco Gorringe, uns navios de pesca estran-
são exterior, e o comandante mandou nivelar o geiros com movimentos suspeitos. Viemos à
navio e aguentar à cota dos 50 metros, evitan- superfície, expondo-nos de propósito e ques-
do vir à superfície de emergência, pois poderia tionando os pesqueiros sobre documentos e
eventualmente ocasionar uma colisão com um conformidades. Deste modo mostrámos que
navio que por azar pudesse estar a passar na Portugal, no seu vasto mar estava presente e
vertical do submarino. Impedidos de localizar atento, numa manobra de pura dissuasão.
exatamente a causa da avaria, pela pulveriza- Conto este episódio porque após fazermos su-
perfície, meia guarnição pediu para subir à tor-
re do submarino, para, pendurados que nem
26 ABRIL 2013 • REVISTA DA ARMADA