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ESTÓRIAS REVISTA DA ARMADA | 506
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PODES ROUBAR-ME O PÃO, A FOME NÃO...
JOSÉ RÉGIO
Enquanto militar do activo sofri na car- coberta de nunca daqui ter saído, mau grado não conhecer pra-
ne a tortura de ter que ser aquilo que ticamente ninguém.
queriam que fosse, sem sentir muitas ve-
zes que deveria assim ser. O sabor dos coentros, sei agora, nunca ter esquecido, assim
como tão bem cantam os melros e tão mal as rolas.
Hoje, afastado da efectividade do servi-
ço percebi o quanto teve de bom para mim Se alguma coisa aprendi ao longo de todas estas vivências foi
o ter sido daquele modo e não doutro. a respeitar o próximo, quer o tenhamos por amigo, adversário
ou inimigo.
Somos todos fruto da educação que fo-
mos recebendo ao longo da vida. Em casa, Também julgo ter aprendido que as situações complicadas re-
na escola, no trabalho, no círculo de ami- querem que estejamos atentos e actuantes.
gos em que nos movimentamos.
Como militar, embora reformado, peçam-me sacrifícios mas
Viver é dar e receber. É uma troca, nem não me peçam compreensão.
sempre equilibrada e justa, mas que nos
vai moldando. Sou …como sou! Sou, como me fizeram!
Em casa, fui enquadrado pela rigidez Ferreira Júnior
de princípios, sobretudo, do meu pai, de- CMG
tentor também dum enorme sentido de
justiça. Nota: Extraído do livro TERRA-MAR-E-GUERRA, Cogitações de um Marinheiro Alentejano.
N.R. O artigo não respeita o novo acordo ortográfico.
Nasci já com a guerra no fim, mas ainda
lhe apanhei o rabisco sem propriamente
lhe sofrer o impacto directo.
Lembro-me do racionamento, da mi-
séria generalizada, do Estado Novo com
a sua velha ordem; Os embarques das
tropas que seguiam para a Índia, de ma-
drugada, muito contestados e com cenas
de violência entre a polícia e os familiares
dos militares que partiam; Como membro
da Academia e da sua Secção Artística, a
revolta de ver recusada pela censura in-
terna do Liceu uma peça de José Régio – “O meu caso” – que
pretendíamos levar à cena na festa do 1º Dezembro.
Claro que a entrada na Escola Naval não me foi fácil, sobretudo
pelo regime de internato, a que nunca estivera habituado. Du-
rante os longos períodos de embarque e navegação, senti bem
na pele o quanto isso me havia sido útil.
À própria praxe, que tanto me custara suportar, também lhe
reconheci a utilidade, mormente, durante o curso de fuzileiro e
na guerra colonial que fiz na Guiné – o espírito de sacrifício, o
tormento do desconhecido, a angústia e a expectativa, o controlo
sobre o medo, a camaradagem, o sentido de entreajuda, a en-
durance.
A variedade de situações por que passei foram esculpindo a
peça em que hoje me tornei, arestas torneadas, pele curtida pelo
sol, a rebeldia sofrida e retraída, finalmente liberta, os olhos bus-
cando horizontes, a ingenuidade sarada pelo tempo, o gosto sal-
gado das coisas, a alma soprada por alísios e tufões.
O regresso ao convívio da minha cidade natal trouxe-me a des-
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