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REVISTA DA ARMADA | 521


                                                              apresentavam, em face do seu novo modo de produção e da sua
                                                              própria estrutura social.
                                                               A “ciência da terra e do oceano”, tal como é ensinada nas universi‑
                                                              dades europeias no fim da Idade Média, consistia, em larga medida,
                                                              no ensino da física aristotélica e na interpretação dos comentadores
                                                              escolásticos. Com as notícias, sobretudo novidades trazidas pelos
                                                              navegadores, a partir do último quartel do século XVI, começa a
                                                              revelar-se no tecido universitário a incompatibilidade entre a expe‑
                                                              riência dos navegadores e as doutrinas escolásticas. Neste campo de
                                                              estudos, que se relacionava com a cosmografia e a física aristotélica,
                                                              fez-se sentir o impacto das navegações na Universidade .
                                                                                                       13
                                                               De uma forma geral, pode concluir‑se que as navegações e a
                                                              Universidade não estiveram em campos completamente opostos,
                                                              muito  embora  as  influências  mútuas  que  em  certos  momentos
                                                              experimentaram não tivessem prosseguido com regularidade.
                                                                                                              
                                                                                                    Baptista Valentim
                                                                                                            CTEN


                                                               Notas
                                                               1  A. Teixeira da Mota, A Escola de Sagres, Separata dos Anais do Clube Militar Naval,
                                                               Número Especial, Lisboa, 1960, p. 9.
                                                               2  A astronomia era nesta época inserida no campo da astrologia, tendo em conta
                                                               que era a partir do estudo dos astros que se efetuava o diagnóstico de doenças
                                                               ou se aconselhava os príncipes, reis, e mesmo elementos da Nobreza e do Clero
                                                               a tomar decisões.
                                                               3  Pedro Nunes, Obras, Vol. I – “Tratado da Sphera, Astronomici Introdvctorii de
                                                               Spaera Epitome”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 121.
                                                               4  Ou também denominada «Aula do Cosmógrafo Mor», onde eram ministrados
                                                               conhecimentos de cosmografia e de astronomia elementares.
                                                               5   Foi  publicado  pelo  Almirante  Teixeira  da  Mota  o  “Regimento  do  Cosmógrafo‑
                                                               -mor”, referente ao ano de 1592, cujo texto alude a uma reforma de um outro
                                                               “regimento” datado de 1559, aprovado no tempo de Pedro Nunes, de que se des‑
                                                               conhece o paradeiro.
                                                               6  O Professor Luís de Albuquerque sublinhou nos seus estudos o caráter “prático”
                                                               da aprendizagem dos pilotos. Aprendizagem essa feita a bordo. O Professor de
                                                               Coimbra  questionava  mesmo  o  sucesso  “desta  aula  de  matemática”,  criada  em
                                                               meados do século XVI. Vide Curso de História da Náutica, Coimbra, Livraria Alme‑
                                                               dina, 1972, pp. 251‑271.
                                                               7  Como foi posto em relevo por Francisco Contente Domingues, “Horizontes Men‑
                  Rosto da Grãmatica Pastrame, Lisboa, Valentim Fernandes, 1497.
             (Extraído de J. V. de Pina Martins – Humanisme et Renaissance de l'Italie au Portugal).  tais dos Homens do Mar no século XVI”, Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhen-
                                                               tista, Coordenação de Maria da Graça M. Ventura, Lisboa, Edições Colibri, 199, pp.
          versitários, bacharéis e licenciados, muito embora não se possa   203‑218, p. 211.
                                                                 Como por exemplo António Moreira de Sá, O Infante D. Henrique e a Universi-
                                                               8
          afirmar que se discutiam em programas universitários formas de   dade,  Lisboa,  Comissão  Executiva  das  Comemorações  do  Quinto  Centenário  da
          desenvolver a náutica, a cartografia ou a construção de instru‑  Morte do Infante D. Henrique, 1960.
                                                                 Luís de Albuquerque, “Náutica e Cartografia em Portugal nos séculos XV e XVI”,
          mentos náuticos.                                     9 A Universidade e os Descobrimentos, Lisboa, Comissão Nacional para as Come‑
           Por essa altura, na Europa, as universidades  encontravam‑se   morações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, pp. 91‑103.
          num  processo  de  decadência.  Verificava-se  um  divórcio  cres‑  10  Vide Cirilo Flórez Miguel; Pablo García Castillo, Roberto Albares, Albares, El Huma-
          cente entre a cultura universitária e a sociedade em geral. Os   nismo Científico, Salamanca, Caja de Ahorros Y Monte de Piedad de Salamanca, 1988,
                                                               p.30.
          “saberes da periferia”, isto é, os saberes que circulavam entre   11  Vitorino Magalhães Godinho, “Navegação oceânica e origens da náutica astro‑
          os grupos sociais que estavam associados à prática dos ofícios   nómica”, in Duarte Leite, Histórias dos Descobrimentos, Colectânea de Esparsos.
          e  das  artes  mecânicas  –  artesãos,  construtores  de  fortalezas,   Organização, notas e estudo final de V. Magalhães Godinho, Lisboa, Edições Cos‑
                                                               mos, 1960, p.497.
          relojoeiros,  construtores  navais,  pilotos,  polidores  de  lentes  –   12  A expressão, que foi utilizada por Henrique Leitão, parece-nos adequada a uma
          ganhavam grande relevância e reconhecimento da sua utilidade   transformação que se encontra em curso nos séculos XV e XVI. Veja-se Henrique
          social, diante dos saberes eruditos e livrescos que eram ensina‑  Leitão, “Um Novo Mundo e uma Nova Ciência”, 360º Ciência Descoberta, Lisboa,
                                                               Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 22‑23.
          dos no interior das universidades. Na verdade, as universidades   13  Vide W.G.L Randles, “La Science Universitaire en Europe et les découvertes Por‑
          vão perdendo, aos poucos, o monopólio das discussões intelec‑  tugaises: aristotélisme doctrinaire et experience des navigateures”, Mare Liberum,
                                                               nº 6, dezembro de 1993, pp. 19‑24.
          tuais, ainda que alguns centros como Salamanca, Oxford ou Paris
          sejam palco de disputas filosóficas animadas. Muitos professo‑
          res e reputados mestres preferem ensinar e trabalhar fora dos   Bibliografia
          muros  da  Universidade.  O  corpo  académico  universitário  das   ALBUQUERQUE, Luís de, Para a História da Ciência em Portugal, Lisboa, Livros Hori‑
                                                               zonte, 1973.
          várias escolas resiste, de uma forma geral, à novidade e às novas   BEAUJOUAN, Guy, «Science Livresque et Art Nautique au XVe Siècle» in Cinquiéme
          correntes de pensamento. A inovação intelectual vai tornar‑se   MeColloque International de Histoire Maritime, Paris, SEVPEN, 1966, pp.61-83.
          evidente nos centros académicos mais jovens, como as univer‑  BRAGA, Teófilo, História da Universidade de Coimbra, Lisboa, Typografia da Real
                                                               Academia das Sciencias, Tomo I, 1897(?)
          sidades de Wittenberg (1502), Alcalá (1508) ou Leiden (1508),   BURKE, Peter, A Social History of Knowledge, Cambridge, Polity Press, 2000.
          onde já imperava a força da corrente Humanista, mas não foi   CARVALHO, Rómulo de, História da Educação em Portugal, 2ª Ed. Lisboa, Fundação
          suficiente para impedir que os novos saberes, alicerçados numa   Calouste Gulbenkian, 1999.
          forte componente técnica e prática, continuassem a ter maior   DIAS, J. Sebastião da Silva, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século
                                                               XVI, Lisboa, Presença, 1982.
          capacidade de resposta para os novos desafios que as sociedades

                                                                                                   AGOSTO 2017    21
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