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apresentavam, em face do seu novo modo de produção e da sua
própria estrutura social.
A “ciência da terra e do oceano”, tal como é ensinada nas universi‑
dades europeias no fim da Idade Média, consistia, em larga medida,
no ensino da física aristotélica e na interpretação dos comentadores
escolásticos. Com as notícias, sobretudo novidades trazidas pelos
navegadores, a partir do último quartel do século XVI, começa a
revelar-se no tecido universitário a incompatibilidade entre a expe‑
riência dos navegadores e as doutrinas escolásticas. Neste campo de
estudos, que se relacionava com a cosmografia e a física aristotélica,
fez-se sentir o impacto das navegações na Universidade .
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De uma forma geral, pode concluir‑se que as navegações e a
Universidade não estiveram em campos completamente opostos,
muito embora as influências mútuas que em certos momentos
experimentaram não tivessem prosseguido com regularidade.
Baptista Valentim
CTEN
Notas
1 A. Teixeira da Mota, A Escola de Sagres, Separata dos Anais do Clube Militar Naval,
Número Especial, Lisboa, 1960, p. 9.
2 A astronomia era nesta época inserida no campo da astrologia, tendo em conta
que era a partir do estudo dos astros que se efetuava o diagnóstico de doenças
ou se aconselhava os príncipes, reis, e mesmo elementos da Nobreza e do Clero
a tomar decisões.
3 Pedro Nunes, Obras, Vol. I – “Tratado da Sphera, Astronomici Introdvctorii de
Spaera Epitome”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 121.
4 Ou também denominada «Aula do Cosmógrafo Mor», onde eram ministrados
conhecimentos de cosmografia e de astronomia elementares.
5 Foi publicado pelo Almirante Teixeira da Mota o “Regimento do Cosmógrafo‑
-mor”, referente ao ano de 1592, cujo texto alude a uma reforma de um outro
“regimento” datado de 1559, aprovado no tempo de Pedro Nunes, de que se des‑
conhece o paradeiro.
6 O Professor Luís de Albuquerque sublinhou nos seus estudos o caráter “prático”
da aprendizagem dos pilotos. Aprendizagem essa feita a bordo. O Professor de
Coimbra questionava mesmo o sucesso “desta aula de matemática”, criada em
meados do século XVI. Vide Curso de História da Náutica, Coimbra, Livraria Alme‑
dina, 1972, pp. 251‑271.
7 Como foi posto em relevo por Francisco Contente Domingues, “Horizontes Men‑
Rosto da Grãmatica Pastrame, Lisboa, Valentim Fernandes, 1497.
(Extraído de J. V. de Pina Martins – Humanisme et Renaissance de l'Italie au Portugal). tais dos Homens do Mar no século XVI”, Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhen-
tista, Coordenação de Maria da Graça M. Ventura, Lisboa, Edições Colibri, 199, pp.
versitários, bacharéis e licenciados, muito embora não se possa 203‑218, p. 211.
Como por exemplo António Moreira de Sá, O Infante D. Henrique e a Universi-
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afirmar que se discutiam em programas universitários formas de dade, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da
desenvolver a náutica, a cartografia ou a construção de instru‑ Morte do Infante D. Henrique, 1960.
Luís de Albuquerque, “Náutica e Cartografia em Portugal nos séculos XV e XVI”,
mentos náuticos. 9 A Universidade e os Descobrimentos, Lisboa, Comissão Nacional para as Come‑
Por essa altura, na Europa, as universidades encontravam‑se morações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, pp. 91‑103.
num processo de decadência. Verificava-se um divórcio cres‑ 10 Vide Cirilo Flórez Miguel; Pablo García Castillo, Roberto Albares, Albares, El Huma-
cente entre a cultura universitária e a sociedade em geral. Os nismo Científico, Salamanca, Caja de Ahorros Y Monte de Piedad de Salamanca, 1988,
p.30.
“saberes da periferia”, isto é, os saberes que circulavam entre 11 Vitorino Magalhães Godinho, “Navegação oceânica e origens da náutica astro‑
os grupos sociais que estavam associados à prática dos ofícios nómica”, in Duarte Leite, Histórias dos Descobrimentos, Colectânea de Esparsos.
e das artes mecânicas – artesãos, construtores de fortalezas, Organização, notas e estudo final de V. Magalhães Godinho, Lisboa, Edições Cos‑
mos, 1960, p.497.
relojoeiros, construtores navais, pilotos, polidores de lentes – 12 A expressão, que foi utilizada por Henrique Leitão, parece-nos adequada a uma
ganhavam grande relevância e reconhecimento da sua utilidade transformação que se encontra em curso nos séculos XV e XVI. Veja-se Henrique
social, diante dos saberes eruditos e livrescos que eram ensina‑ Leitão, “Um Novo Mundo e uma Nova Ciência”, 360º Ciência Descoberta, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 22‑23.
dos no interior das universidades. Na verdade, as universidades 13 Vide W.G.L Randles, “La Science Universitaire en Europe et les découvertes Por‑
vão perdendo, aos poucos, o monopólio das discussões intelec‑ tugaises: aristotélisme doctrinaire et experience des navigateures”, Mare Liberum,
nº 6, dezembro de 1993, pp. 19‑24.
tuais, ainda que alguns centros como Salamanca, Oxford ou Paris
sejam palco de disputas filosóficas animadas. Muitos professo‑
res e reputados mestres preferem ensinar e trabalhar fora dos Bibliografia
muros da Universidade. O corpo académico universitário das ALBUQUERQUE, Luís de, Para a História da Ciência em Portugal, Lisboa, Livros Hori‑
zonte, 1973.
várias escolas resiste, de uma forma geral, à novidade e às novas BEAUJOUAN, Guy, «Science Livresque et Art Nautique au XVe Siècle» in Cinquiéme
correntes de pensamento. A inovação intelectual vai tornar‑se MeColloque International de Histoire Maritime, Paris, SEVPEN, 1966, pp.61-83.
evidente nos centros académicos mais jovens, como as univer‑ BRAGA, Teófilo, História da Universidade de Coimbra, Lisboa, Typografia da Real
Academia das Sciencias, Tomo I, 1897(?)
sidades de Wittenberg (1502), Alcalá (1508) ou Leiden (1508), BURKE, Peter, A Social History of Knowledge, Cambridge, Polity Press, 2000.
onde já imperava a força da corrente Humanista, mas não foi CARVALHO, Rómulo de, História da Educação em Portugal, 2ª Ed. Lisboa, Fundação
suficiente para impedir que os novos saberes, alicerçados numa Calouste Gulbenkian, 1999.
forte componente técnica e prática, continuassem a ter maior DIAS, J. Sebastião da Silva, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século
XVI, Lisboa, Presença, 1982.
capacidade de resposta para os novos desafios que as sociedades
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