Page 29 - Revista da Armada
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do navio na força, que totalizou seis meses, já ia longa, no entanto A certa altura surgiu um daqueles momentos de silêncio que pon-
ainda faltava esfolar o rabo do gato. Daí que não seja de estranhar tuam todas as conversas, mesmo as mais animadas. Ditou o serviço
que fi ndas as conversas e estórias relaƟ vas à úlƟ ma estadia num que Ɵ vesse a necessidade de olhar para ré, e nesse momento de-
porto, a conversa começasse a recair naquela casa que Ɵ nha fi cado paro com uma das mais marcantes cenas da minha carreira naval.
para trás, habitada pela outra família. Os principais personagens O quarto à ponte do navio era consƟ tuído por marinheirões de
destes diálogos eram naturalmente os descendentes, com idades mão-cheia. Homens quase todos eles tarimbados por inúmeras
em que os abraços e carinhos ainda são uma constante. horas de mar, por vezes em situações adversas. Nunca hesitaram
O cabo de quarto era o cabo A. Era uma personagem casƟ ça, não no cumprimento do dever, mesmo em horas diİ ceis. Não se deixa-
só pelo seu porte, mas pela pronúncia e linguajar tão caracterís- ram abater mesmo perante cenas pungentes, como a recolha de
Ɵ co dos norte-alentejanos. Quando telefonavam da cozinha para cadáveres de um naufrágio algum tempo antes no decurso desta
a ponte a pedir autorização para servir as refeições já nos ơ nha- missão. No entanto, ante a recordação dos pujinhos, notavam-se
mos habituado às perguntas sobre o que era a “bóia”, ou aos rela- algumas lágrimas a brilhar nos cantos dos seus olhos.
tos relaƟ vamente ao “cambú”, quando se procedia ao pagamento A ordem que ia dar pôde esperar alguns minutos.
do subsídio de embarque. Certa vez, ao servir o reforço nocturno,
apresentou-se no refeitório das praças dizendo “Chegou o trata- Mamede Alves
dor”. Correu-lhe bem, pois o comandante, que aí se encontrava a CFR
conviver com a guarnição, não se apercebeu da forma como se fez N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
anunciar. Enfi m, era habitualmente uma fonte de boa disposição.
Depois daqueles que já Ɵ nham descendência terem falado, che-
gou a vez do cabo A. falar do seu pujinho. O pujinho é um rede-
moinho de vento, sendo assim denominado em algumas aldeias,
nomeadamente na da sua proveniência. Sendo a sua fi lhota uma
criança vivaz e naturalmente irrequieta, era assim tratada por aque-
le gigante de coração mole.
Eu, jovem ofi cial ainda solteiro e arredado das alegrias da proge-
nitura, não conseguia contribuir para aquele peditório.
ABRIL 2020 29