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REVISTA DA ARMADA | 550













              do navio na força, que totalizou seis meses, já ia longa, no entanto   A certa altura surgiu um daqueles momentos de silêncio que pon-
              ainda faltava esfolar o rabo do gato. Daí que não seja de estranhar   tuam todas as conversas, mesmo as mais animadas. Ditou o serviço
              que fi ndas as conversas e estórias relaƟ vas à úlƟ ma estadia num   que Ɵ vesse a necessidade de olhar para ré, e nesse momento de-
              porto, a conversa começasse a recair naquela casa que Ɵ nha fi cado   paro com uma das mais marcantes cenas da minha carreira naval.
              para trás, habitada pela outra família. Os principais personagens   O quarto à ponte do navio era consƟ tuído por marinheirões de
              destes diálogos eram naturalmente os descendentes, com idades   mão-cheia. Homens quase todos eles tarimbados por inúmeras
              em que os abraços e carinhos ainda são uma constante.  horas de mar, por vezes em situações adversas. Nunca hesitaram
               O cabo de quarto era o cabo A. Era uma personagem casƟ ça, não   no cumprimento do dever, mesmo em horas diİ ceis. Não se deixa-
              só pelo seu porte, mas pela pronúncia e linguajar tão caracterís-  ram abater mesmo perante cenas pungentes, como a recolha de
              Ɵ co dos norte-alentejanos. Quando telefonavam da cozinha para   cadáveres de um naufrágio algum tempo antes no decurso desta
              a ponte a pedir autorização para servir as refeições já nos ơ nha-  missão. No entanto, ante a recordação dos pujinhos, notavam-se
              mos habituado às perguntas sobre o que era a “bóia”, ou aos rela-  algumas lágrimas a brilhar nos cantos dos seus olhos.
              tos relaƟ vamente ao “cambú”, quando se procedia ao pagamento   A ordem que ia dar pôde esperar alguns minutos.
              do subsídio de embarque. Certa vez, ao servir o reforço nocturno,
              apresentou-se no refeitório das praças dizendo “Chegou o trata-                           Mamede Alves
              dor”. Correu-lhe bem, pois o comandante, que aí se encontrava a                                  CFR
              conviver com a guarnição, não se apercebeu da forma como se fez   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
              anunciar. Enfi m, era habitualmente uma fonte de boa disposição.
               Depois daqueles que já Ɵ nham descendência terem falado, che-
              gou a vez do cabo A. falar do seu pujinho. O pujinho é um rede-
              moinho de vento, sendo assim denominado em algumas aldeias,
              nomeadamente na da sua proveniência. Sendo a sua fi lhota uma
              criança vivaz e naturalmente irrequieta, era assim tratada por aque-
              le gigante de coração mole.
               Eu, jovem ofi cial ainda solteiro e arredado das alegrias da proge-
              nitura, não conseguia contribuir para aquele peditório.













































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