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REVISTA DA ARMADA | 550
ESTÓRIAS 58
AS HISTÓRIAS, OU ESTÓRIAS… O PUJINHO
… que agora se seguem, são o relato de alguns episódios por
mim vividos ao longo da minha carreira naval. Em quase to- navio estava integrado na STANAVFORLANT . Naquela época
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dos fui interveniente directo ou testemunha. Noutros não es- O coube a esta força integrar a operação “Sharp Guard” da NATO,
tava longe e ouvi os relatos em primeira mão. que consisƟ a em fazer cumprir resoluções das Nações Unidas rela-
Ainda assim, são a minha versão do que se passou, que não Ɵ vas ao embargo de armas aos países da ex-Jugoslávia, bem como
é necessariamente a versão correcta. Como se costuma di- embargo total ao que dela resultou (Sérvia e Montenegro), como
zer, uma história tem sempre três versões: a de uma parte; a forma de tentar pôr fi m ao confl ito que se arrastava naqueles ma-
da outra parte; e a verdade. Também diz o nosso povo que logrados países.
quem conta um conto acrescenta um ponto. Finalmente, tra- Pela área de operações “Otranto” passava todo o tráfego maríƟ -
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tam-se de episódios ocorridos nalguns casos há mais de vinte mo com desƟ no aos portos do AdriáƟ co, como tal, era necessário
anos, pelo que a erosão da memória também pode contri- detetar, idenƟ fi car, vistoriar e difundir a informação relaƟ va a todos
buir para a sua inexacƟ dão. Assim, caso o caro leitor encon- os navios mercantes que aí entravam, e que não eram poucos, pelo
tre alguém que aponte incorrecções aos meus relatos, conto que os dias corriam rápidos, por trabalhosos. O mesmo não se podia
com a vossa indulgência, para comigo bem como para com dizer da área de operações “Montenegro” . Aí, o disposiƟ vo naval
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o vosso interlocutor, tendo em conta o que acabei de referir. posicionado ao largo da costa montenegrina apenas Ɵ nha que as-
A maior parte dos episódios que vou relatar não envergo- segurar que nenhum navio mercante se dirigia para os seus portos.
nham ninguém, mas, ainda assim, como não Ɵ ve autoriza- Ora, a navegação mercante estava bem ciente do embargo e das
ção dos intervenientes, a sua idenƟ fi cação foi deliberada- operações navais em curso para o garanƟ rem, como tal, a única na-
mente omiƟ da, excepto no que a mim se refere. Estou con- vegação que raramente se avistava eram os navios da força que se
vencido que os personagens intervenientes ou testemunhas encontravam nas áreas adjacentes à nossa.
os irão reconhecer. Assim, os quartos decorriam pachorrenta mente, embalados pela
Como referi, a fonte das estórias é a minha experiência di- suave calema adriáƟ ca, que a todos fazia cair na modorra, agravada
reta, como tal a sua incidência é restrita ao universo dos na- pelo clima abafado e húmido do início do verão.
vios onde prestei serviço. Naturalmente irão surgir estórias Se há coisa que os marinheiros gostam de fazer é conversar, e para
com denominadores comuns, como sejam as relacionadas tal não é preciso esperar pelo quarto de folga, assim a natureza das
com viagens de instrução da Escola Naval, as relaƟ vas a uma tarefas o permita. A área “Montenegro”, pela sua pasmaceira opera-
missão de longa duração numa fragata ou aos longos anos cional, era muito dada àquela acƟ vidade. Para agravar, a integração
passados nos saudosos submarinos da classe “Albacora”.
Alguns personagens também se repetem, nomeadamente
aqueles que pela sua natureza mais se prestaram a contri-
buir com situações caricatas. Na gíria naval são conhecidos
como “os cromos”.
Aqueles que Ɵ veram a dita, ou desdita, de comigo pri-
var, muito provavelmente já ouviram estas estórias, quiçá
mais de uma vez. A vida no mar, nomeadamente os longos
quartos nocturnos e as permanências na câmara, propi-
ciam a aparição dos contadores de estórias, nos quais tam-
bém me incluo. Peço mais uma vez a vossa indulgência por
me aturarem novamente, principalmente por não irem ler
nada de novo.
Este exercício literário não envolve nenhuma catarse in-
terior ou nostalgia pelos bons velhos tempos, embora não
descarte esta úlƟ ma hipótese. O seu leitmoƟ v foi apenas re-
cordar episódios que considero engraçados ou curiosos, com
a vã esperança de os resgatar do oblívio do tempo, ou que
possam ajudar na edifi cação e divulgação do que é o espírito
marinheiro, o que quer que isso seja.
Finalmente, é a minha singela homenagem a todos os ma-
rinheiros da Marinha Portuguesa, tantas vezes esquecidos
e injusƟ çados por este país que se diz de marinheiros, mor-
mente aqueles com os quais Ɵ ve o grato prazer e honra de
navegar, e que tantas vezes me ouviram dizer “Vamos para o Notas
mar, que no mar é que se está bem”. 1 STANAVFORLANT: Standing Naval Force AtlanƟ c. Força naval permanente da NATO.
2 Área de operações situada no estreito com o mesmo nome, que separa a penín-
sula itálica da península balcânica.
Mamede Alves 3 Área de operações situada ao largo do Montenegro.
CFR
28 ABRIL 2020