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REVISTA DA ARMADA | 563
A expressão latina tradicional é "timeo Danaos et dona feren- Era já então o mesmo logro geopolítico. E é óbvio que estava
tes". Mas, neste caso, poder-se-ia dizer "temei os Portugueses já então a ser movido, a partir de Portugal, por Pacheco Pereira
quando eles oferecem cartografia"... e os cartógrafos portugueses, nesses anos anteriores à viagem
Luxo artístico, ostensivo, para tentar disfarçar o logro geográfico, de Magalhães-Elcano (e até já desde há alguns anos antes... com
subreptício. reflexos internacionais visíveis na célebre carta de 1513 do almi-
Os Portugueses fizeram isso ao longo do reinado do "Venturo- rante turco Piri Reis, etc.)…
so" Rei Manuel; e, perto do fim, em 1519, continuavam a fazê-lo. Na "Carta Marina Navigatoria Portugallen…", em 1516, o Rei
Fizeram-no com Duarte Pacheco Pereira, c.1505-1508, no seu "De Manuel de Portugal "rules the waves" cavalgando um grande pei-
Situ Orbis"; fizeram-no com a iluminura do célebre globo terrestre xe, tritão ou golfinho, triunfal, com a bandeira portuguesa… Do-
do hemisfério de Portugal segundo o Tratado de Tordesilhas, na mina, monopolista, na sua "Rota do Cabo" que é o acesso, único,
luxuosa iluminura de c.1519 na Crónica de Duarte Galvão, a obra- à Índia verdadeira (da pimenta), e às Molucas (das especiarias)…
-prima cuja autoria foi pelo signatário também em 1993-1994 pela Quanto aos outros Europeus — os que não respeitem o Tratado
primeira vez atribuída a António de Holanda, juntamente com o de Tordesilhas (o "testamento de Adão"…) —, essa rota é proibi-
mapamundo do "Atlas Miller"; e fizeram-no na imagem irmã, e da ("mare clausum"). Quanto aos Castelhanos — os vizinhos pró-
coeva, que é esse luxuoso e grosseiro mapamundo de 1519… em ximos, irmãos rivais, e cordiais competidores…—, esses, de facto,
que andou a mão do mesmo iluminador luso-flamengo António de não vão lá… porque respeitam o Tratado… Mas o problema é que
Holanda, por ordem do mesmo Rei Dom Manuel… (usando sucessivos expatriados idos de Portugal, como João Dias
Na opinião do autor, sobre um outro exemplar cartográfico, de Solis e Fernão de Magalhães) estão prestes a finalmente con-
também ele de primeira importância na História da Cartografia seguir chegar lá pelo Ocidente!
mundial (opinião que deixou publicamente expressa, na comu- Na Europa Central, Waldseemüller reflectiu sempre a evolução
nidade científica, desde 2005 e 2006), foi também essa mesma dos traçados geográficos portugueses, pois o Imperador Maximi-
contra-informação geográfica e geopolítica portuguesa, difun- liano, o primo-direito do "Príncipe Perfeito" D. João II de Portugal
dida a partir de Portugal ao longo do reinado do "Venturoso" (com quem, em vida, esteve sempre estreitamente aliado), mante-
Manuel, que levou à surpreendente mudança (um enigma que, ve a articulação com o seu sucessor D. Manuel. E foi por isso que
desde sempre, havia intrigado os especialistas) visível na evolu- foram os interesses dos financeiros alemães, ligados a Maximiliano,
ção (ou seria melhor dizer "estranha regressão"…?!) do padrão que estiveram decisivamente presentes, no tempo de D. Manuel,
geográfico global das célebres cartas de Martin Waldseemüller nos tratos comerciais portugueses da "Rota do Cabo", para a Índia
(que actualmente se conservam na Library of Congress, em Wa- verdadeira (!), a que fora descoberta e operada pelos Portugueses
shington DC): desde a famosíssima de 1507 (a primeira com o desde o seu triunfo na viagem dos Gamas de 1497-1499 (e desde a,
nome "América") e a influentíssima de 1513 (com a renovação disso indissociável, desgraça de Colombo em 1500…).
da tábua geral de Ptolomeu) até à intrigantíssima "Carta Marina Também nesse aspecto o "Venturoso" Rei Manuel (da Casa de
Navigatoria Portugallen[sia] Navigationes…" de 1516, em que o Avis-Beja/Viseu) foi, e tentou ser (sobretudo neste seu tercei-
grande cartógrafo de St. Dié, sempre influenciado pelos Portu- ro e tardio casamento), um continuador do seu falecido primo
gueses, surpreendentemente, recuou (!), e voltou atrás em rela- e cunhado Rei D. João II. Mas a verdade é que, desde a morte
ção à anterior representação pioneira que havia feito, em 1507, desse grande Rei anterior, em 1495, quem de facto já havia ga-
do Novo Mundo separado. nho o jogo diplomático principal — o jogo da aliança matrimonial
com o Imperador e a Casa de Áustria (Habsburgo) — haviam sido
os "Reis Católicos", Fernando de Aragão (Trastâmara) e Isabel de
Castela (e Avis-Bragança). E os Portugueses haviam perdido. O
Imperador seguinte — o Imperador do único Império verdadei-
ramente existente… — veio a ser Carlos, o neto dos "Reis Católi-
cos"… Foram eles que ganharam, no fim; quando em 1495 mor-
reu envenenado o seu adversário, o "Príncipe Perfeito" João II de
Portugal, o Rei da Casa de Avis-Coimbra. Longa guerra, entre a
Casa de Trastâmara, dos "Infantes de Aragão", e a Casa de Avis-
-Coimbra, dos descendentes do Infante Dom Pedro.
Ao contrário do que havia acontecido em 1476 na batalha de
Toro, quem ganhou, em 1495, foi Fernando de Trastâmara. E per-
deu o Príncipe de Portugal. No mundo não existem só espadas e
punhais. Também existem cálices.
Alfredo Pinheiro Marques
Centro de Estudos do Mar e das Navegações
Luís de Albuquerque — CEMAR (Figueira da Foz)
N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
Notas
1 Artigo constituído por 3 partes, baseado nos estudos do autor incluídos em MAR-
QUES, Alfredo Pinheiro, e THOMAZ, Luís Filipe, Atlas Miller, com introdução por
Manuel Moleiro, e prefácio por Joaquim Ferreira do Amaral, Barcelona: M. Mo-
leiro Editor, 2006.
2 Sobre esse fracasso, veja-se Alfredo Pinheiro Marques, "O Sucesso de Vasco da
Gama e a Desgraça de Cristóvão Colombo", Salamanca, e Coimbra, 1994; e Madi-
Pormenor da Carta Marina Navigatoria Portugallen[sia] Navigationes…, de 1516, de Martin Wald-
seemüller, com a imagem do Rei D. Manuel de Portugal, na sua "Rota do Cabo" (Library of Congress, son, U.S.A., 1995).
Washington D.C.)
26 JUNHO 2021