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REVISTA DA ARMADA | 563

          UM "LIVRO DE HORAS TROPICAL"… NUMA                  de um jovem índio do Brasil (!), com o exotismo das suas penas
          EUROPA TROPICAL (PORTUGAL EM 1519)                  (sempre por isso muito citado e apontado na bibliografia publica-
                                                              da), e o terceiro Rei Mago — embora, surpreendentemente, até
           Na cidade cosmopolita dos comércios transoceânicos, na Lisboa   hoje não tenha sido como tal identificado, nos estudos biográfi-
          de então (onde foi assinado e datado o mapamundo, e provavel-  cos, e na História da Arte Portuguesa (e só agora o vá ser, aqui,
          mente terá sido feito o "Atlas Miller” inteiro), tal como nas regiões   pelo autor destas linhas) — é, sem qualquer margem de dúvida,
          pioneiras dos "Descobrimentos Portugueses" de Montemor-o-Ve-  nem mais nem menos do que o próprio jovem Rei português des-
          lho e da Beira Litoral (de onde é, comprovadamente, originário o   se tempo, D. Manuel (!), com a sua então tão característica boina
          ramo europeu dessa família de escudeiros do Ducado de Coimbra   preta com uma jóia (a mesma boina preta com que aparece na
          chamados Reinel), era já então significativa a presença ultramarina   iluminura da primeira página do Livro I de Além-Douro da "Leitu-
          e exótica extra-europeia, de homens, marfins, jacarés, especiarias   ra Nova", e na iluminura de António de Holanda na primeira pá-
          e produtos agrícolas, etc.. Não terá sido por acaso que António de   gina da Crónica de D. Afonso V de Rui de Pina). E a quarta figura,
          Holanda, em 1519, no mapamundo que serve de frontispício ao   o encomendador do quadro (como tal representado tradicional-
          seu "Atlas Miller", em vez de desenhar as cabeças dos ventos, nas   mente ajoelhado aos pés do Menino) é, muito provavelmente, o
          quatro direcções, sob a forma de "putti" tradicionais (como era ha-  cosmógrafo da navegação astronómica portuguesa do tempo do
          bitual na cartografia ptolomaica e na arte italiana), as desenhou   Rei Dom João II, Diego Ortiz de Vilhegas (o "licenciado Calçadi-
          sob a forma, exótica, de quatro jovens africanos (!). Tal como, nessa   lha"), o qual, nesta época, no reinado de D. Manuel, havia sido
          mesma época, em Montemor-o-Velho, c.1515, não foi por acaso   feito Bispo de Viseu, e por isso aí implementou um importante
          que no túmulo do velho Diego de Azambuja — o comandante dos   programa artístico e arquitectónico.
          navegadores Diego Caao ou Bartolomeu Dias, o construtor, para o
          Rei D. João II, do célebre Castelo da Mina (no actual Gana), de onde
          veio para os Portugueses a grande prosperidade do seu ouro da
          Guiné — foi esculpida uma impressionante imagem de um jovem
          escudeiro, em funções de estribeiro, acompanhando na morte o
          seu senhor (ou o seu pai...?), com feições africanas.




















                                                              Pormenor da adoração dos Reis Magos, da Sé de Viseu (escola de Grão Vasco), sen-
                                                              do um deles o então jovem Rei D. Manuel, outro um indígena do Brasil, e outro um
                                                              Rei negro; e a quarta figura, provavelmente, o cosmógrafo Diego Ortiz de Vilhegas
                                                              (Museu Grão Vasco)

          Uma das cabeças soprando os ventos no "Atlas Miller" (BnF); e pormenor do tú-
          mulo de Diogo de Azambuja, no Convento dos Anjos, em Montemor, c.1515, com   O EXCEPCIONAL SIGNIFICADO GEOGRÁFICO DO
          a figura do jovem luso-africano que, anos antes, em 1508, havia sido morto ao   "ATLAS MILLER"
          seu lado, em Safim, no Norte de África  (fotografia de Alfredo Pinheiro Marques;
          CEMAR, Figueira da Foz)
                                                               Quanto ao excepcional significado geográfico do "Atlas Miller",
           O "Atlas Miller" criado em Portugal em 1519 é uma espécie de   a tese que desde 2005-2006 foi exposta, pelo signatário destas
          (estranho) "Livro de Horas tropical"… Talvez, já, um exemplo de   linhas, foi a de que o "Atlas Miller" é um enganador instrumen-
          "luso-tropicalismo",  criado  com  participação  do  flamengo  (ou   to de contra-informação geopolítica e diplomática. É a expressão
          francês?) António de Holanda (o antepassado dos notáveis Ho-  gráfica da visão geoestratégica planetária portuguesa (para en-
          landas que, depois, ao longo dos cinco séculos seguintes, iriam   frentar a visão castelhana), pois a estranha concepção "neo-pto-
          continuar a aparecer na História portuguesa e brasileira). Um "lu-  lomizante" que ostenta, do mar como "stagnon" (os oceanos en-
          so-tropicalismo" quinhentista, que não esperou pelo sociólogo   volvidos pelas terras, a continentalidade do Novo Mundo ligado
          do século XX Gilberto Freyre…                       a uma mítica Terra Austral), convinha aos Portugueses, em 1519,
           O exotismo ultramarino, no Portugal do Rei D. Manuel, nos iní-  porque fazia crer que não era possível navegar e atravessar, de
          cios do século XVI, estava por todo o lado. Até no conhecido qua-  Ocidente para Oriente, pelo outro lado do planeta (fazer o que
          dro a óleo da Adoração dos Magos trazendo as suas oferendas,   Colombo  tentou  infrutiferamente  fazer  em  1492,  e  Magalhães
          de c.1506, proveniente do retábulo da Sé de Viseu, para além da   depois realizou com êxito em 1519-1521). Por isso, os Portugue-
          habitual presença do Rei Mago negro Baltasar (que está lá, como   ses,  ostensivamente,  luxuosamente,  oficialmente,  aceitaram  e
          sempre, sob a forma de um velho negro, de fronte encanecida),   divulgaram  tal  concepção  errónea,  e  ofereceram  este  luxuoso
          um dos outros Reis Magos é representado sob a forma inovadora   exemplar em que a plasmaram.


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