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REVISTA DA ARMADA | 566

         ESTÓRIAS                                                                                          73



         O ARROZ DE POLVO




                                                                                       ciar à pancada. O murro de um
                                                                                       fuzileiro amaciava qualquer um.
                                                                                       Nessa época ainda não se tinha
                                                                                       descoberto a técnica do choque
                                                                                       térmico (primeiro congelador e
                                                                                       depois água a ferver) para ama-
                                                                                       ciar o polvo.
                                                                                        Quando, ao fim da manhã, en-
                                                                                       trei na messe com os outros ofi-
                                                                                       ciais subalternos, um aroma de
                                                                                       manjar dos deuses pairava já no
                                                                                       ar. Na grande panela, um arroz de
                                                                                       polvo malandrinho exalava um
                                                                                       perfume que era uma promessa
                                                                                       cheia de fragâncias de alho, coen-
                                                                                       tros e hortelã. E o sabor superava
         Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes                                              aveludado,  o  arroz  “al dente”  e
                                                                                       as espectativas. O polvo macio e

                                                                                       o picante na conta certa. Comi
                                                                                       que  nem  um  nababo,  como  se
                                                                                       come quando se tem vinte anos
                                                                                       e se ignora o colesterol, as azias
                                                                                       e os refluxos. Repeti com gosto. E
                                                                                       preparava-me para sair da messe
            ós, a arraia-miúda, os oficiais subalternos, tínhamo-lo baptiza-
         Ndo de Sandokan, porque ele rapava o crânio à navalha, como   quando me cruzei com a comitiva de oficiais superiores que entra-
         o “Tigre da Malásia” ou o Yul Brynner no filme “O Rei e Eu”. Havia   vam com o Almirante.
         também um Sandokan no IPO, o Instituto de Oncologia: era a moda.   E o Mello Cristino, que contava comigo para abrilhantar a festa,
         Mas o nosso Sandokan da Armada era muito superior. O almirante   não me deixou escapar: deu-me o braço e levou-me a reboque
         fingia que não sabia, mas gostava. Ser o Sandokan da Marinha era   até à cadeira à esquerda do Almirante. Este impunha naturalmen-
         chic, era sexy, tinha panache.                       te a sua presença, pela sua figura e pelo seu carisma. Impecável
          Foi só na véspera, à hora de almoço, que soubemos que ele vinha   na sua farda branca, tinha o gesto elegante dum príncipe india-
         visitar a unidade. Foi o Comte. Mello Cristino, director da Escola de   no e o olhar penetrante dum guerreiro malaio. Tratou-me com a
         Fuzileiros, que o anunciou na sua voz tonitruante: “Meus senhores,   enorme deferência com que os grandes senhores tratam os hu-
         amanhã o Senhor Almirante vem visitar a Escola; quero tudo limpo   mildes. Quem era? De onde vinha? Que planos tinha?
         e arrumado, para causar boa impressão; o Senhor Almirante almoça   Agarrei-me a esta tábua de salvação e falei…falei…, para não ter
         connosco e haverá rancho melhorado; como de costume, haverá   de comer. Falei do meu pai que era médico rural, do despertar da
         dois serviços , o primeiro para os oficiais subalternos e o segundo   minha vocação, do curso na faculdade, de tudo e de nada. Sen-
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         para os outros oficiais.” E tinha acrescentado, mas eu já não o ouvi:   tia-me no papel de Xerazade, a contar uma história sem fim para
         “Os médicos almoçam na segunda mesa”. O Comte. Mello Cristino,   entreter o meu príncipe. De tempos a tempos, ele interrompia,
         só depois percebi, contava com os dois médicos da unidade para   cordial: “Come tão pouco, caro doutor? É sempre assim?” E eu
         abrilhantar a conversa com o Almirante.              dava uma desculpa de ocasião e voltava à narrativa.
          Na Marinha comia-se bem. Tinha tido a experiência disso no navio   Falar para não comer! Nunca mais tive uma experiência tão insó-
         hidrográfico “João de Lisboa”, em que o dispenseiro era um antigo   lita. Nunca mais tive a meu lado um grande senhor, que sabia ouvir
         cozinheiro do “Gambrinus”: quando o comandante estava a bordo,   as histórias e aspirações dum jovem. Nunca mais esqueci aquele
         a ementa podia chegar à “lagosta suada”; mas quando ele se ausen-  arroz de polvo. E, embora esfumada pelo tempo, conservo ainda
         tava, só comíamos peixe-espada frito. De qualquer modo, agora nos   na memória a figura elegante, de farda branca, do meu Sandokan!
         Fuzileiros, um almoço de almirante não nos ia desiludir. Com pouco
         mais de vinte anos e sem problemas de fastio, preparámo-nos para
         o evento gastronómico como para um jejum de Quaresma.                             Prof. Doutor Jacinto Gonçalves
          Na manhã seguinte apanhei a vedeta que nos levava do Cais                           2TEN Médico do 4º. CFORN
         da Marinha, no Terreiro do Paço, até ao Alfeite; depois era cerca   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
         de meia hora de camioneta até Vale de Zebro. A unidade estava
         efervescente. Já estava tudo limpo e varrido e os sargentos pas-
         savam em revista a formatura, estado das fardas e equipamen-  Nota
         to. Ao passar pela cozinha, tive a revelação do menu do nosso    1   Serviços de almoço (ou mesas), em momentos consecutivos, na Messe de Oficiais.
         almoço: íamos comer polvo, que os cozinheiros estavam a ama-


          30  SETEMBRO / OUTUBRO 2021
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