Page 30 - Revista da Armada
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REVISTA DA ARMADA | 566
ESTÓRIAS 73
O ARROZ DE POLVO
ciar à pancada. O murro de um
fuzileiro amaciava qualquer um.
Nessa época ainda não se tinha
descoberto a técnica do choque
térmico (primeiro congelador e
depois água a ferver) para ama-
ciar o polvo.
Quando, ao fim da manhã, en-
trei na messe com os outros ofi-
ciais subalternos, um aroma de
manjar dos deuses pairava já no
ar. Na grande panela, um arroz de
polvo malandrinho exalava um
perfume que era uma promessa
cheia de fragâncias de alho, coen-
tros e hortelã. E o sabor superava
Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes aveludado, o arroz “al dente” e
as espectativas. O polvo macio e
o picante na conta certa. Comi
que nem um nababo, como se
come quando se tem vinte anos
e se ignora o colesterol, as azias
e os refluxos. Repeti com gosto. E
preparava-me para sair da messe
ós, a arraia-miúda, os oficiais subalternos, tínhamo-lo baptiza-
Ndo de Sandokan, porque ele rapava o crânio à navalha, como quando me cruzei com a comitiva de oficiais superiores que entra-
o “Tigre da Malásia” ou o Yul Brynner no filme “O Rei e Eu”. Havia vam com o Almirante.
também um Sandokan no IPO, o Instituto de Oncologia: era a moda. E o Mello Cristino, que contava comigo para abrilhantar a festa,
Mas o nosso Sandokan da Armada era muito superior. O almirante não me deixou escapar: deu-me o braço e levou-me a reboque
fingia que não sabia, mas gostava. Ser o Sandokan da Marinha era até à cadeira à esquerda do Almirante. Este impunha naturalmen-
chic, era sexy, tinha panache. te a sua presença, pela sua figura e pelo seu carisma. Impecável
Foi só na véspera, à hora de almoço, que soubemos que ele vinha na sua farda branca, tinha o gesto elegante dum príncipe india-
visitar a unidade. Foi o Comte. Mello Cristino, director da Escola de no e o olhar penetrante dum guerreiro malaio. Tratou-me com a
Fuzileiros, que o anunciou na sua voz tonitruante: “Meus senhores, enorme deferência com que os grandes senhores tratam os hu-
amanhã o Senhor Almirante vem visitar a Escola; quero tudo limpo mildes. Quem era? De onde vinha? Que planos tinha?
e arrumado, para causar boa impressão; o Senhor Almirante almoça Agarrei-me a esta tábua de salvação e falei…falei…, para não ter
connosco e haverá rancho melhorado; como de costume, haverá de comer. Falei do meu pai que era médico rural, do despertar da
dois serviços , o primeiro para os oficiais subalternos e o segundo minha vocação, do curso na faculdade, de tudo e de nada. Sen-
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para os outros oficiais.” E tinha acrescentado, mas eu já não o ouvi: tia-me no papel de Xerazade, a contar uma história sem fim para
“Os médicos almoçam na segunda mesa”. O Comte. Mello Cristino, entreter o meu príncipe. De tempos a tempos, ele interrompia,
só depois percebi, contava com os dois médicos da unidade para cordial: “Come tão pouco, caro doutor? É sempre assim?” E eu
abrilhantar a conversa com o Almirante. dava uma desculpa de ocasião e voltava à narrativa.
Na Marinha comia-se bem. Tinha tido a experiência disso no navio Falar para não comer! Nunca mais tive uma experiência tão insó-
hidrográfico “João de Lisboa”, em que o dispenseiro era um antigo lita. Nunca mais tive a meu lado um grande senhor, que sabia ouvir
cozinheiro do “Gambrinus”: quando o comandante estava a bordo, as histórias e aspirações dum jovem. Nunca mais esqueci aquele
a ementa podia chegar à “lagosta suada”; mas quando ele se ausen- arroz de polvo. E, embora esfumada pelo tempo, conservo ainda
tava, só comíamos peixe-espada frito. De qualquer modo, agora nos na memória a figura elegante, de farda branca, do meu Sandokan!
Fuzileiros, um almoço de almirante não nos ia desiludir. Com pouco
mais de vinte anos e sem problemas de fastio, preparámo-nos para
o evento gastronómico como para um jejum de Quaresma. Prof. Doutor Jacinto Gonçalves
Na manhã seguinte apanhei a vedeta que nos levava do Cais 2TEN Médico do 4º. CFORN
da Marinha, no Terreiro do Paço, até ao Alfeite; depois era cerca N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
de meia hora de camioneta até Vale de Zebro. A unidade estava
efervescente. Já estava tudo limpo e varrido e os sargentos pas-
savam em revista a formatura, estado das fardas e equipamen- Nota
to. Ao passar pela cozinha, tive a revelação do menu do nosso 1 Serviços de almoço (ou mesas), em momentos consecutivos, na Messe de Oficiais.
almoço: íamos comer polvo, que os cozinheiros estavam a ama-
30 SETEMBRO / OUTUBRO 2021