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despontando, com isso, efeitos miméticos de consequências des. Assim, para lidar com a realidade de forma mais eficiente,
não antecipáveis. No ciberbullying da positividade, sendo qua- conferindo maior probabilidade de sobrevivência à espécie hu-
se tudo fake o elevado nível de frustração é cada vez mais real. mana, o cérebro cria um sem número de abstrações e de crenças,
É o resultado mais visível do pleito real versus virtual, onde o pa- com a tecnologia a facilitar o alinhamento dos que afinam por
recer e o dissimular prevalecem em prejuízo do genuíno e do ser, um qualquer esdrúxulo diapasão.
pelo que “à mulher de César basta (agora) parecer honesta”. No seu Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley (1864-1963)
Conforme se vai antevendo pelo reforço do politicamen- vaticinava, em 1932, que a tecnologia poderia ser utilizada para
te correto, dentro de poucos anos pode tornar-se inaceitá- moldar comportamentos. Mas se o seu discípulo George Orwell
vel destrinçar real e virtual, assim como bem e mal, verdade (1903-1950) temia que no futuro as pessoas fossem privadas
e mentira, verdadeiro e falso, e demais maniqueísmos que os da informação, a preocupação de Huxley residia no seu exces-
seres humanos desenvolveram para ordenar o contexto social. so, receando que vivessem felizes e manipuladas num mar de
Nesta perspetiva, não será certamente alheio o facto de nas irrelevâncias.
redes sociais apenas existir o botão “gosto” (like). Permitindo Dada a sua plasticidade, flexibilidade e dinamismo, o cérebro
tão somente optar entre humano já começou a mol-
a concordância plena e a dar-se à lógica ditada pelo
mera abstenção, eufemisti- digital, verificando-se um
camente é passada a ideia número crescente de de-
de que todas as opções SEMIÓTICA cisões tomadas de forma
estão em aberto. Com a di- algo rígida e binária. Neste
latação da positividade, ali- A semiótica é o ramo do conhecimento que tem por objeto faux pas, releva o contra-
cerçada numa certa tirania de investigação todas as linguagens verbais e não verbais, isto riar da natureza humana,
do politicamente correto, é, qualquer fenómeno produtor de significado em termos de renunciando cega e volun-
a prazo todas as narrativas comunicação através dos sentidos. Na realidade, tudo pode tariamente ao lema sape-
poderão coexistir, enfim, ser analisado a par- tir da semiótica, visto re aude (ouse saber), que
ex aequo e com idêntica permitiu ao Homo sapiens
legitimidade, processo que que qualquer coisa que exista na tornar-se hegemónico. Pro-
tenderá a fragilizar o ethos mente humana carece de uma gressivamente, à medida
das organizações mais hie- representa- ção mental do que o novo paradigma for
rarquizadas e menos di- objeto real. A semiótica terá arregimentando seguido-
nâmicas, as instituições e, tido origem na Grécia antiga res, perder-se-ão, irreme-
consequentemente, a vida na mesma altura em que diavelmente, criatividade,
em sociedade e a própria surgiu a filo- sofia, mas só no intuição e espontaneidade,
democracia. No pequeno início do sécu- lo XX conheceu que muito provavelmente
ecrã, onde a cada momen- desenvolvimentos que lhe conferiram se refletirão em menor pro-
to o algoritmo fornece um relevância, em particular com os trabalhos de Ferdinand dução artística, científica e
motivo suplementar para de Saussure (1857-1913) e Charles Peirce (1839-1914). intelectual.
alicerçar todo o tipo de Com o advento do marketing, da internet e, mais recente- Contra intuitivamente, os
convicções, tudo é redu- mente, com o uso massificado das redes sociais, o estudo dos avanços científicos e tec-
zido a uma mera constru- símbolos ganhou importância crucial na vida quotidiana e em nológicos aparentam estar
ção e a realidade encon- todos os aspetos da comunicação, com o propósito de explo- a cercear os atributos que
tra-se sitiada. Conforme conferiram hegemonia aos
apregoado pelo jornalista rar subtilezas e ampliar perspetivas da própria realidade. humanos, ao mesmo tem-
e escritor polaco Ryszard po que os “ajuda” a criar a
Kapuscinski (1932-2007), invisível muralha orwellia-
quando se descobriu que a na que os tornará cativos
informação era um negócio da sua deliberada opção e
a verdade deixou de ser importante. Ainda que noutra aceção, vítimas ex-machina do rumo inaugurado pelo Homo sapiens há
sentenciava o preceituado pelo filósofo austríaco Karl Popper 100 mil anos. De acordo com o historiador Yuval Noah Harari,
(1902-1994): o símbolo mais transcendente que existe é a este Homo deus irá «no século XXI criar ficções mais podero-
verdade. sas e religiões mais totalitárias do que nunca. Com o auxílio da
Embora subsista alguma desconfiança relativamente ao novo biotecnologia e dos algoritmos informáticos, estas religiões não
paradigma, a polarização da opinião pública e a “industrialização se limitarão a controlar cada passo das nossas vidas, mas se-
da mentira” são cada vez mais “legítimas” no alcançar de objeti- rão igualmente capazes de moldar os nossos corpos, cérebros
vos e apogeu da realização pessoal. Paulatinamente, a realidade e mentes e de criar mundos virtuais completos com os seus
alternativa confere a possibilidade de tudo impugnar e, ao mes- próprios infernos e paraísos». À semelhança do que sucede no
mo tempo, sustentar as mais implausíveis teorias e conspirações, excêntrico mundo concebido por Lewis Carroll (1832-1898) em
aspeto que saiu reforçado na América de Trump, com o Brexit, na Alice no País das Maravilhas e na respetiva sequela, onde im-
Catalunha, na Polónia, na Hungria e agora na Ucrânia, sinais que pera a lógica do absurdo típica dos sonhos, a humanidade pode
Anne Applebaum associa ao “crepúsculo da democracia”. Face estar prestes a “atravessar o espelho”, mas do outro lado ape-
aos comportamentos individuais menos previsíveis decorrentes nas poderá esperar o inesperado…
do incremento da volatilidade, os acontecimentos imprevisíveis
são hoje mais frequentes. Neste contexto, Miguel Nicoledis ad-
mite que o cérebro humano tem “literalmente um limite”, razão António Gonçalves
pela qual não consegue resolver certos paradoxos e ambiguida- CFR
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