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REVISTA DA ARMADA | 576

          despontando,  com  isso,  efeitos  miméticos  de  consequências   des. Assim, para lidar com a realidade de forma mais eficiente,
          não antecipáveis. No ciberbullying da positividade, sendo qua-  conferindo maior probabilidade de sobrevivência à espécie hu-
          se tudo fake o elevado nível de frustração é cada vez mais real.    mana, o cérebro cria um sem número de abstrações e de crenças,
          É o resultado mais visível do pleito real versus virtual, onde o pa-  com a tecnologia a facilitar o alinhamento dos que afinam por
          recer e o dissimular prevalecem em prejuízo do genuíno e do ser,   um qualquer esdrúxulo diapasão.
          pelo que “à mulher de César basta (agora) parecer honesta”.  No seu  Admirável  Mundo  Novo,  Aldous  Huxley  (1864-1963)
           Conforme  se  vai  antevendo  pelo  reforço  do  politicamen-  vaticinava, em 1932, que a tecnologia poderia ser utilizada para
          te  correto,  dentro  de  poucos  anos  pode  tornar-se  inaceitá-  moldar comportamentos. Mas se o seu discípulo George Orwell
          vel destrinçar real e virtual, assim como bem e mal, verdade    (1903-1950) temia que no futuro as pessoas fossem privadas
          e mentira, verdadeiro e falso, e demais maniqueísmos que os   da informação, a preocupação de Huxley residia no seu exces-
          seres humanos desenvolveram para ordenar o contexto social.   so, receando que vivessem felizes e manipuladas num mar de
          Nesta  perspetiva,  não  será  certamente  alheio  o  facto  de  nas   irrelevâncias.
          redes sociais apenas existir o botão “gosto” (like). Permitindo   Dada a sua plasticidade, flexibilidade e dinamismo, o cérebro
          tão  somente  optar  entre                                                      humano já começou a mol-
          a  concordância  plena  e  a                                                    dar-se à lógica ditada pelo
          mera abstenção, eufemisti-                                                      digital,  verificando-se  um
          camente é passada a ideia                                                       número  crescente  de  de-
          de  que  todas  as  opções                   SEMIÓTICA                          cisões  tomadas  de  forma
          estão em aberto. Com a di-                                                      algo rígida e binária. Neste
          latação da positividade, ali-  A semiótica é o ramo do conhecimento que tem por objeto   faux pas,  releva  o  contra-
          cerçada numa certa tirania   de investigação todas as linguagens verbais e não verbais, isto   riar  da  natureza  humana,
          do  politicamente  correto,   é, qualquer fenómeno produtor de significado em termos de   renunciando cega e volun-
          a prazo todas as narrativas   comunicação através dos sentidos. Na realidade, tudo pode   tariamente  ao  lema sape-
          poderão  coexistir,  enfim,   ser  analisado  a  par-   tir  da  semiótica,  visto   re aude  (ouse  saber),  que
          ex aequo  e  com  idêntica                                                      permitiu  ao Homo sapiens
          legitimidade, processo que   que   qualquer                coisa que exista na   tornar-se hegemónico. Pro-
          tenderá a fragilizar o ethos   mente humana                 carece  de  uma     gressivamente,  à  medida
          das organizações mais hie-  representa-                      ção  mental  do    que  o  novo  paradigma  for
          rarquizadas  e  menos  di-  objeto real. A                   semiótica  terá    arregimentando  seguido-
          nâmicas,  as  instituições  e,   tido  origem                na Grécia antiga   res,  perder-se-ão,  irreme-
          consequentemente,  a  vida   na   mesma                      altura  em  que    diavelmente,  criatividade,
          em  sociedade  e  a  própria   surgiu  a  filo-             sofia,  mas  só  no   intuição e espontaneidade,
          democracia.  No  pequeno    início  do  sécu-              lo XX conheceu       que  muito  provavelmente
          ecrã, onde a cada momen-    desenvolvimentos             que  lhe  conferiram   se refletirão em menor pro-
          to o algoritmo fornece um   relevância,  em  particular  com  os  trabalhos  de  Ferdinand   dução artística, científica e
          motivo  suplementar  para   de  Saussure  (1857-1913)  e  Charles  Peirce  (1839-1914).    intelectual.
          alicerçar  todo  o  tipo  de   Com o advento do marketing, da internet e, mais recente-  Contra intuitivamente, os
          convicções,  tudo  é  redu-  mente, com o uso massificado das redes sociais, o estudo dos   avanços  científicos  e  tec-
          zido  a  uma  mera  constru-  símbolos ganhou importância crucial na vida quotidiana e em   nológicos  aparentam  estar
          ção  e  a  realidade  encon-  todos os aspetos da comunicação, com o propósito de explo-  a cercear os atributos que
          tra-se  sitiada.  Conforme                                                      conferiram hegemonia aos
          apregoado  pelo  jornalista   rar subtilezas e ampliar perspetivas da própria realidade.   humanos,  ao  mesmo  tem-
          e  escritor  polaco  Ryszard                                                    po que os “ajuda” a criar a
          Kapuscinski  (1932-2007),                                                       invisível  muralha  orwellia-
          quando se descobriu que a                                                       na  que  os  tornará  cativos
          informação era um negócio                                                       da sua deliberada opção e
          a verdade deixou de ser importante. Ainda que noutra aceção,   vítimas ex-machina do rumo inaugurado pelo Homo sapiens há
          sentenciava o preceituado pelo filósofo austríaco Karl Popper   100 mil anos. De acordo com o historiador Yuval Noah Harari,
          (1902-1994):  o  símbolo  mais  transcendente  que  existe  é  a    este Homo deus irá «no século XXI criar ficções mais podero-
          verdade.                                            sas e religiões mais totalitárias do que nunca. Com o auxílio da
           Embora  subsista  alguma  desconfiança  relativamente  ao  novo   biotecnologia e dos algoritmos informáticos, estas religiões não
          paradigma, a polarização da opinião pública e a “industrialização   se limitarão a controlar cada passo das nossas vidas, mas se-
          da mentira” são cada vez mais “legítimas” no alcançar de objeti-  rão igualmente capazes de moldar os nossos corpos, cérebros
          vos e apogeu da realização pessoal. Paulatinamente, a realidade   e  mentes  e  de  criar  mundos  virtuais  completos  com  os  seus
          alternativa confere a possibilidade de tudo impugnar e, ao mes-  próprios infernos e paraísos». À semelhança do que sucede no
          mo tempo, sustentar as mais implausíveis teorias e conspirações,   excêntrico mundo concebido por Lewis Carroll (1832-1898) em
          aspeto que saiu reforçado na América de Trump, com o Brexit, na   Alice no País das Maravilhas e na respetiva sequela, onde im-
          Catalunha, na Polónia, na Hungria e agora na Ucrânia, sinais que   pera a lógica do absurdo típica dos sonhos, a humanidade pode
          Anne Applebaum associa ao “crepúsculo da democracia”. Face   estar prestes a “atravessar o espelho”, mas do outro lado ape-
          aos comportamentos individuais menos previsíveis decorrentes   nas poderá esperar o inesperado…
          do incremento da volatilidade, os acontecimentos imprevisíveis
          são hoje mais frequentes. Neste contexto, Miguel Nicoledis ad-
          mite que o cérebro humano tem “literalmente um limite”, razão                            António Gonçalves
          pela qual não consegue resolver certos paradoxos e ambiguida-                                      CFR



                                                                                                   AGOSTO  2022  25
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