Page 47 - Revista da Armada
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tempo  em  que  Hollywood  runda  n.§o   quarto -  o  Fradique -  fazia  ouvir as   gelo. e mesmo as prendas das passagei-
         dava  oportunidade  ~s  americanas).   vozes habituais;              ras,  enfim,  a  vida  banal sem  história
         Mesmo  o  mrus  recente  violento  inci-  - Leme todo de ló! Arriando velas   nem poesia dos modernos transatlán·
         dente da IIQuanzaM estava m8io esqUB-  de proa  e  cutelos! Grande  8  gávea  a   ticos.
         cido. Fora o caso de, d8baixo d8 t8mpo,   barlaventol Caça a  veIa rél Ala braços!   Os seus passageiros tinham falhado
         no canal de Moçambique, ter cafdo um   Volta!                        um excitante episódio da pura vida do
         homem ao mar. A  gente do escaler d8   O navio estacou não longe da bóia   mar  que  agora,  com  o  advento  do
         salvação tinha logo acorrido 8  formara   que, da popa, os oficiais tinham largado   vapor,  deixou  de  ser  interessante  e
         na  tolda em sil"ncio solene.  Contudo,   a marcar o pombo. A  manobra correra   din4mico  como,  poucas  dezenas  de
         o comandante Reis tivera a coragem de   rápida,  como  se  tratasse  de salvar a   anos antes,  fora  vivida por seus avÓS
         não mandar SIriar o escaler. convencido   vida de  uma criatura humana.   quando, simples emigrantes. iam atra-
         de que com aquele mar tAo cavado S8   Foi pois com  intima  sensaç.§o  de   vessando  o  mesmo  Atlântico,  mas â
         perderia mais gente.              prazer que todos vimos largar de sota·   vela  nos clippers de  1850.
            -Eu cá -comentava alguém -se  vento  o  escaler  que,  vigorosamente   Enfim.  em  Agosto de  1927,  trinta
         tivesse  mandado  guarnecer  o  salva-  puxado pelos remadores,  aproou para   anos depois, ainda a bordo do grande
         -vidas,  n.§o  poderia  deixar  d8  ir  lá   onde  fumegava  a  bóia  e  a  apanhou   transatl~ntico IIAquitaniaJ/,  em viagem
         dentro ...                        como também o pombo,  voltando logo   de Nova Iorque para a  Europa,  me foi
            Depois  do  café,  todos  subiram  à   para bordo da canhoneira que, auaves·   dado assistir a  um desses trágicos aci-
         tolda. E no pequeno xadraz da popa da   sada  à  ondulação,  balouçava  pesa·   dentes.
         IfDouroJ/,  8  palestra  das  tardes  conti·   damente.                 O paquete corria a 23 milhas quan·
         nuava, enquanto não era interrompida   Em poucos minutos o escaler tinha   do, à tarde, caiu um passageiro ao mar.
         peJas formaturas a  postos, como com-  sido  içado  de  leva-arriba,  e  o  navio   Deram  uma  volta,  arriaram  um  dos
         bate, inc{mdio, ou abandono do navio,   mareava  e seguia,  tendo  carregado a   salva·vidas,  mas o  homem já  nilo foi
         de que o Comandante muito gostava e   mezena e içado velas de proa e cutelos,   encontrado.  Desta  vez,  eu era apenas
         que,  por  vezes,  até  complicava  com   enquanto se alava por sotavento os bra-  turista,  n,§o  tinha responsabilidade
         algum imprevisto, para treinar a guar-  ços de ré e se amurava de novo 8  vela
         nição,  como fizera  na  «RainhaJt.   grande.                                       ,'.
           Este  oficial,  autoritário  mas  cor-  Tornámos  a  olhar para  o  Coman·
        recto, era um tipo queimado de homem   dante, esperando ordens para a forma-  Certo, nunca me surgiu a oportuni·
        do mar, pouco comunicativo, amigo de   tura  da  tarde,  mas  limitou·se  a   dade de concorrer para salvar alguém
        navegar.  Admirava e  falava  num seu   dizer-nos:                    ca1do ao mar ... a não ser a mim mesmo,
        antigo comandante, o Pinha. Exercidos   -  Da  mesma  maneira  como  apa-  nadando, quando se virou a lancha da
        nll'o faltavam, e havia até os da artilha-  nhámos o pombo, teriamos salvado um   Fragata.  Ahl foi melhor assim.  Ainda
        ria mesmo com balanço, 8.mbora as nos-  homem  que  cafsse  ao  mar..  N.§o  foi   bem  que  nll'o  aconteceu  a  bordo  da
        sas peças, de carregar pela boca, runda   tempo perdido este exerci cio de hoje.   «Rainha)!,  quando estávamos de capa,
         tivessem os antigos r8paros navais de   Por aquela tarde jIJ estava satisfeito,   depois da safda de Lourenço Marques.
        quatro rodas. Passeava a barlavento, à   e não pensava mrus em outros postos.   Mas eu fizera quanto estava ao meu
        antiga.                            Aquilo  fora  um  exercicio como  o  da   alcance para n.§o faltar à promessa cris·
                                           IfRainha», que era afinal o que animava   tA,  feita durante o toque das Trindades
           Já  se  ia desfazendo ao sul o fumo
                                           os navios de  guerra da época.     no sino da corveta KDuque da Terceira»,
         do vapor do Cabo,  quando se notou à                                 quando era oficial de quarto na tarde
         proa grande agitação entre a marinha-  E  enquanto a proa,  na sua  casota
                                           por cima da cozinha, o casal de pombos,   do dia 26 de Fevereiro de 1896.
         gem, que correu à borda de barlavento
                                           arrulhando, trocava talvez impresslJes
         enquanto alguns olhavam para ré com
         ares angustiados.                 sobre  uma futura  prudêncie nos voos
                                           em  volta  do  navio,  a  guamiç,§o  bem
            Também  nÓS,  os oficiais,  fomos a
                                           disposta notava que quem mandava ali,
         borda  e  logo  reparámos  qU8  um  dos
                                           como árbitro no alto mar, o fazia como
         pombos  do  navio  estava  poisado  no   gente humana, e  nll'o como brutos da
         mar e se debatia sem poder voar para
                                           Ane da  Vela.
         bordo,  como geralmente  fazia  aquele
                                              Nós a rá,  enquanto um lamentava
         casal que constituia a  mascote da  trio
                                           não  ter  navegado  em  naus,  e  outro
         pulaç.§o e sala em 8xcurslJes em  volta   protestava  que,  se  se  apanhasse  na
         do navio.
                                           estação de Macau só regressaria  pela
            Que estaria sentindo aquele pobre
                                           América, o Doutor, contemplando dis·
         pc1ssaro, por as suas pautas abertas lh8   traidamente a pacffica esteira do navio
         não permitirem levantar voo da água?   -  diferente da de vapor revolvida por
         Via  afastar-se  o  companheiro,  o  seu
                                           hálice  -  o  Doutor,  dizfamos,  parecia
         ninho,  o seu  viver ...          calcular mentalmente quantos dias, por
            Certo,  era af1itivo abandonar 8  ver   aquele  andar,  ainda  levariamos  atá
         assim acabar aquele animal de estima-  Lisboa,  e  cantarolava sugestivamente
         ção.  Mas ninguém se atrevia a fa/ar a   o conhecido fado:
         seu favor,  propondo que se parasse o   -  ...  É o carro do Jacinto ...
         navio,  quando,  no  meio  da  tristeza   Agora o paquete ingl~s já se sumira
         geral,  se  ouviu  o  Comandante  gritar  para  lá  do  horizonte.  Mas,  após  uma
         para  a  ponte  estas  poucas  palavras:   tarde  maritima  tão  romantizada,  nós
           -  Oh! senhor guarda-marinha, atra·   insistfamos em não invejar a sorte dos   (ln  .Anais do Clube Militar Naval_.
         vesse,  arrie o  escaler.         habitantes daquele palácio, apesar de               por Gago Coutinho)
           A  tolda  encheu·se  logo  de  gente   na modesta aDouro» nos faltar a luxuosa
        pronta à manobra, enquan to o oficial de   mesa,  os  desafogados alojamentos,  o   ••••••••••••••••••
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