Page 192 - Revista da Armada
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Fontes Para a História da
Fontes Para a História da
Arqueologia Naval Portuguesa
Arqueologia Naval Portuguesa
2. Os códices de D. António de Ataíde
omo ficou dito no artigo anterior, o
conjunto dos três códices outrora
Cpertença de D. António de Ataíde
que hoje se encontra na Houghton
Library, reúne o núcleo mais importante
de documentos do que seria uma das
melhores bibliotecas privadas ao tempo.
Deles deu já notícia Charles Boxer, mas
justifica-se que se chame de novo a
atenção para este precioso acervo de
informações relativo às navegações por-
tuguesas.
O primeiro deste conjunto de três
códices diz respeito ao período de 1588 a
1633. É o que contém mais dados rela-
tivos à construção e apresto de navios e
armadas, incluindo custos detalhados de
construção, soldos e quintaladas, arti-
lharia, boticas e similares. Destacam-se as
contas relativas a duas naus da Índia de
três cobertas, feitas em 1624; um opúsculo
impresso em 1588 sobre a Invencível
Armada, de que existe uma versão com-
pleta no segundo volume (neste faltam o
primeiro e o último fólio); a descrição A conquista da cidade da Baía efectuada pela esquadra portuguesa e castelhana,em 1625. Pintura de Frei
pormenorizada da armada de socorro da Juan Bautista Maino, Museu do Prado
Baía, em 1624; e ainda a da que foi en-
viada a Pernambuco em 1631. O conjunto dos materiais providencia por exemplo, na determinação empírica
Mais invulgares são os documentos ao leitor uma excelente visão da vida a do traçado das superestruturas. A legis-
sobre a mastreação dos navios e o apare- bordo de um navio português no primeiro lação tentou atalhar os inconvenientes
lho: na documentação técnica conhecida quartel do século XVII, complementando- resultantes dessa situação, como se vê já
só se lhes compara um documento similar -os com os relatos de Linschoten e Pyrard no reinado de D. Sebastião, procurando
sobre o aparelho de um galeão, contido de Laval; o códice contém o regimento regular os processo de construção dos
nas Coriosidades de Gonçalo de Sousa. dos escrivães da Carreira de 1611, além navios de modo a garantir a observância
O que todavia merece uma chamada de legislação sobre o carregamento das de regras padronizadas. Duas “polémi-
de atenção especial são os reportórios das especiarias e a ocupação dos espaços a cas” ilustram na perfeição esta busca de
armadas enviadas para o Brasil, pois não bordo, entre outra, e ainda uma cópia do denominadores comuns: a que opunha os
se ficam pela simples listagem de nomes regimento das liberdades de 1515. defensores de navios de maior porte pos-
de navios e respectivos comandantes, Cumpre também citar o conjunto com- sível aos que defendiam os portes médios,
como é usual. A relação da armada envia- posto pela cópia manuscrita das regu- e a referida disputa sobre se as naus da
da para socorrer a Baía em 1624 é mesmo lações portuguesas de construção naval de Índia deviam ter três ou quatro cobertas.
a mais completa e informada lista de 1578, das Ordenanzas de 1613, também A intenção não passou disso mesmo,
navios conhecida até esta data de que em cópia manuscrita, e pelo raro opúsculo em parte. A sucessão das Ordenanzas (em
temos conhecimento (1). impresso das Ordenanzas de 1618, pro- 1607, 1613 e 1618, por exemplo) revela
O segundo códice é particularmente fusamente anotado por D. António de também a ineficácia da aplicação das
notável pela inserção de documentos Ataíde – facto de excepcional importân- normas no plano prático. Curiosamente,
impressos invulgares, a par dos manus- cia, que só por si merece um estudo porém, a intervenção legislativa foi dife-
critos. Abre com um dos raros exemplares àparte. rente em Portugal, onde a Coroa mostrou
conhecidos, em perfeito estado de conser- Os procedimentos da construção naval menos tendências reguladoras.
vação, da relação da Armada de 1588 ibérica neste período estão assim perfeita- D. António de Ataíde seguiu a questão
dada à estampa por Antonio Alvarez, em mente documentados pelos mais rele- e interessou-se por ela, como o mostram
Lisboa; e contém ainda uma outra, tam- vantes dos documentos legislativos que as profusas anotações manuscritas ao
bém pouco comum, com o título Rela- diziam respeito à matéria. Não havendo exemplar das Ordenanzas de 1618. É pos-
cion Verdadera del Armada, que el Rey ainda normas passíveis de regular a cons- sível que este interesse não fosse mera-
Don Felippe nuestro señor mando juntar trução naval em todos os seus passos, os mente particular, pois tem de se conside-
en el puerto de la ciudad de Lisboa en el mestres contrutores ficavam com uma rar a hipótese da opinião de D. António
Reyno de Portugal el año de 1588. grande margem de acção que se reflectia, ter sido expressamente requerida, o que
10 JUNHO 2001 • REVISTA DA ARMADA