Page 51 - Revista da Armada
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Praça Maior.
homens que , no século XIX, o mutilaram e ati- XVI, quando Salamanca já tinha uma apreciá- mas delas indecifráveis sem especulação. Para
raram para o Tormes, condenando-o a desa- vel população, o velho templo revelou-se insu- trás já ficou a casa museu Unamuno, antiga
parecer de todo. Felizmente que a loucura não ficiente e cabido decidiu fazer um novo, mais residência reitoral da Universidade ocupada
é eterna e a rudeza do granito foi mais forte que espaçoso e adaptado aos novos tempos. Con- por Miguel de Unamuno quando exerceu
o vandalismo dos homens, permitindo que tudo, pensaram os fundadores não destruir o essas funções. Esta figura de eminente intelec-
ainda hoje possamos admirar aquele belo que estava feito, deixando que as novas naves tual, filósofo, escritor e pedagogo, que marcou
exemplar, testemunho da cultura e religiosi- crescessem a par das já existentes, apoiando-se a história de Salamanca, de toda a Espanha e
dade celta. No mesmo local, pode o viajante nas velhas paredes. Hoje podemos apreciar os da própria Europa, com a sua obra. Muito
apreciar uma estátua que relembra a história do dois estilos arquitectónicos e comparar os poderíamos dizer sobre este ilustre perso-
Lazarilho de Tormes: o personagem da popular géneros decorativos esculturais e pictóricos nagem, mas o tempo urge e temos de seguir o
novela picaresca do século XIV. Lazaro, de seu enquadrados no ambiente em que foram cria- nosso caminho para norte até à Plaza Mayor,
nome, era o jovem pobre e ingénuo, oferecido dos, formando dois conjuntos harmónicos que com um rápido olhar pela Universidade
pela mãe a um velho cego para lhe servir de dão testemunho de duas épocas e de duas Pontifícia e pela popular casa das conchas. A
guia, vê-se transformado em esperto vilão, sem maneiras de pensar e sentir. Aliás, se observar- Plaza Mayor de hoje é como que um centro da
escrúpulos ou sentimentos, pelas vicissitudes mos cada uma delas com mais atenção, cidade, mas sentimo-la deslocada do núcleo
da vida e pela vileza dos homens. encontraremos um nexo de continuidade artís- medieval. Na verdade, foi construída no século
Entrámos na cidade pela porta do rio, como tica, que vem do longínquo século XII até ao XVIII, numa fase de alargamento dos limites
qualquer peregrino que demandasse Santiago XVIII, quando toda a obra ficou pronta. O pórti- antigos. O local era – como é costume dizer-se
de Compostela, vindo do sul, ou como o fize- co, as naves laterais e o cabeção do templo – "fora de portas", funcionando aí o mercado
ram milhares de mercadores da rota da prata, românico espelham um estilo mais antigo e, de S. Martinho, onde se comerciava gado. A
durante séculos e séculos. E subindo pelas seguramente, correspondem à primeira fase da cerca medieval salmantina confinava a cidade
estreitas ruelas, sempre em direcção ao norte, construção, mas a abóbada do transepto apon- em limites muito mais curtos que os actuais,
as duas catedrais surgem-nos de rompante ta para técnicas mais recentes, mais próximas passando próximo do extremo norte do edifício
imersas no casario, sem que consigamos apre- do gótico de que do românico clássico. A de- da Universidade, perto da casa das conchas.
ciar a grandeza da estrutura global. A parte que coração do altar-mor, é composta por um Salamanca é, de facto, um verdadeiro
encontramos primeiro, pertence ao claustro da retábulo com 53 cenas da vida de Cristo, num museu que exigia uma visita prolongada e uma
catedral românica - a mais antiga, construída estilo gótico típico, mas a abóbada é decorada descrição muito mais pormenorizada do que
no século XII sobre as ruínas de uma igreja com uma visão do juízo final de claras influên- aquela que é possível fazer dentro dos limites
visigótica - mas virando à esquerda e à direita, cias renascentistas, quer na técnica quer no deste artigo. Uma cidade onde é fácil teste-
depois de passar pela Praça João XXIII, damos gosto figurativo. Ao centro, por cima do próprio munhar de forma directa mais um milénio de
de caras com a entrada da catedral gótica, tem- altar, um nicho alberga uma imagem da História do Ocidente Europeu, com uma inten-
plo imponente construído ao lado do antigo e Virgem da Vega, feita em madeira, revestida a sidade que arrepia o mais incauto viajante.
quase o engolindo nas suas paredes. No século ouro e decorada com pedrarias. A catedral nova, Desde o varrasco ibérico colocado ao pé da
retoma a linha evolutiva dos gos- ponte romana até aos mais recentes edifícios,
tos ibéricos no princípio do sécu- encontramos bancos de escola onde estu-
lo XVI, com a sua arquitectura daram gerações e gerações de estudantes, uma
gótica, mas prossegue até ao bar- imensa biblioteca que guarda o saber de sécu-
roco do século XVIII, presentes los, e por toda a parte sentimos a presença
no coro e cadeiral, bem como na velada de homens que estudaram à luz da
decoração de algumas capelas. vela, da candeia de azeite, do gaz, do petróleo
Mas seguindo o nosso cami- e, agora, da electricidade. Um verdadeiro
nho, viramos à esquerda até à paraíso de cultura que importa preservar, para
rua de los libreros, passando exemplo dos presentes e vindouros.
pelo pátio das escolas e pela
entrada da Universidade, de J. Semedo de Matos
fachada plateresca, plena de re- CTEN FZ
Abóbada da capela mor da catedral velha. presentações simbólicas, algu- 1 Vaceus e vetãos foram duas comunidades de Celtiberos
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2001 13