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ESCOLA NAVAL



                    Uma visita a Salamanca
                    Uma visita a Salamanca




         ESBOÇO HISTÓRICO                   e conquistaram Salamanca (Helmantiké,
                                            como a descreve Políbio e Livio), deixando o
               rio Tormes alimenta-se dos degelos e  episódio guerreiro marcado por uma lenda de
               águas pluviais que correm da Serra de  heroísmo de mulheres salmantinas. Cercada a
         OGredos e Serra de Ávila, conjunto  cidade, prometeu Aníbal que a deixaria em
         montanhoso que atravessa a Península Ibérica  paz, a troco de valores em prata e ouro, mas
         no sentido este-oeste e continua no território  os salmantinos não aceitaram e viram entrar as
         português com o sistema Montejunto-Estrela.  tropas de Cartago, com grande violência.
         Corre para norte, entrando no extenso planalto  Assustados, pediram, então, que os deixassem
         e indo desaguar ao Douro E é a confluência  sair apenas com as suas túnicas, deixando as
         das condições geográficas locais que determi-  suas armas e riquezas. Assim aconteceu, mas
         nou o aparecimento da cidade de Salamanca.  as mulheres – cuidando que não seriam revis-
         Seguindo o curso do Tormes, de sul para  tadas as suas roupas – trouxeram as espadas
         norte, os viajantes ultrapassavam a cadeia de  escondidas e deram-nas aos homens que
         montanhas onde nasce o rio - de ermos cami-  voltaram a atacar os cartagineses, recuperando  Miguel de Unamuno.
         nhos, próprios de cabras e ovelhas - e depara-  uma parte dos seus bens e fugindo para as  então, a cidade desenvolveu-se em torno da
         vam-se com o imenso planalto, próprio para a  montanhas.              catedral e – pouco tempo depois - da
         agricultura. Duas formas de vida encontraram  Seguiu-se a ocupação romana, mas a sub-  Universidade, oficializada por Carta Magna de
         naqueles pequenos terraços sobranceiros a  missão dos povos locais não foi pacífica –  Afonso X, o sábio, datada de Toledo em 24 de
         uma curva do Tormes o local protegido e  como é sabido, pela lenda de Viriato –, contu-  Maio de 1254, mas existente desde o reinado
         seguro para o seu comércio. É assim mesmo  do a lei romana acabou por chegar a toda a  de Afonso IX. É a Universidade mais antiga da
         que nascem as cidades: precisam condições  parte, mantendo-se por muitos séculos, sub-  Península Ibérica, e pouco mais recente é que
         naturais de segurança contra as razias de mon-  sistindo (de certa maneira) às invasões bár-  as de Bolonha e Paris.
         tanheiros e meliantes e situam-se na confluên-  baras e, particularmente, à entrada dos visigo-
         cia de caminhos naturais, permitindo o acesso  dos, no século V. Salamanca guarda ainda
         a mercadores vindos de toda a parte. No caso  numerosos vestígios da sua fase mais antiga, e  SALAMANCA:
         de Salamanca um dos caminhos sobre que se  dois deles tornaram-se símbolos da própria  A CIDADE UNIVERSITÁRIA
         colocou é a ancestral rota da prata, por onde  cidade. O mais notável é a ponte romana, que
         circularam os mais antigos povos da  atravessa o Tormes a sul da cidade, em  Cidade Universitária desde remotos tempos,
         Península, transportando esse preciso metal  direcção à chamada porta do rio: no segui-  foi à volta desta instituição de saber que
         até ao Mediterrâneo.               mento da tal rota da prata, que atravessava a  cresceu e se desenvolveu, agregando colégios
           As populações pré-romanas são os  Península, de Cádis até Astorga, passando por  e atraindo estudantes de toda a parte da
         celtiberos, e Salamanca edificou-se no limite  Mérida. E o outro é o varrasco celta, verda-  Europa. De Salamanca saíram alguns dos
         entre as comunidades de agricultores vaceus  deiro ex-libris da cidade, constituído por uma  astrónomos que serviram na corte portuguesa,
         (norte) e de pastores vetãos (sul), sendo povoa-  escultura em granito de um touro colocado  nos reinados de D. João II e D. Manuel I, desta-
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         da, essencialmente, por estes últimos. No  num plinto, com formas toscas e (talvez) primi-  cando-se pela sua importância e valor o Mestre
         século III a.C., Aníbal (Cartago) levou a cabo  tivas, mas de um simbolismo muito rico e  Abraão Zacuto, autor das tábuas solares
         uma campanha sobre a Península Ibérica, de  específico, ligado à fertilidade da terra.  (Almanaque Perpétuo) que acompanharam
         cujas riquezas pretendia apoderar-se, e onde  Salamanca foi reconquistada aos mouros,  Vasco da Gama à Índia e que serviram nas
         pretendia fazer uma base para voltar a atacar  no ano de 1102, por Afonso VI de Leão e  navegações portuguesas durante o século XV e
         Roma. Em 220 a.C. os seus exércitos cercaram  Castela, avô de Afonso Henriques. A partir de  XVI. A cidade tem por isso uma relação históri-
                                                                               ca estreita com Portugal que assumiu uma
                                                                               importância especial na época das grandes
                                                                               navegações. E isto, por si só, seria uma moti-
                                                                               vação suficiente para que a Escola Naval ali se
                                                                               deslocasse, procurando sentir naquelas pedras
                                                                               e bancos o mesmo cheiro, o mesmo ar e a
                                                                               mesma luz que sentiram Abraão Zacuto,
                                                                               Diogo Ortiz, Frei Luís de Leon, Miguel de
                                                                               Unamuno e muitas outras figuras de elevada
                                                                               craveira intelectual que ajudaram a construir a
                                                                               cultura que herdámos.
                                                                                 Chegados pois à cidade pelo caminho de
                                                                               Vilar Formoso, depara-se-nos o magnificente
                                                                               espectáculo do casario medieval, onde sobres-
                                                                               saem as torres da catedral nova. Estávamos ao
                                                                               pé da ponte romana, de frente para o que terá
                                                                               sido a porta do rio, admirando o já falado var-
                                                                               rasco salmantino, hoje degradado pelas
         Ponte romana sobre o rio Tormes.                                      cruezas do tempo e pela incompreensão dos
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