Page 126 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (24)
O Malabar a ferro e fogo
O Malabar a ferro e fogo
m dos mais importantes relatos da A acção dos portugueses a partir daí é apresentou, a atitude de negociação, que
missão de Vasco da Gama, nesta bem expressiva da forma como D. Manuel assumiram inicialmente, transformou-se
Usua segunda expedição à Índia, é o queria tomar conta do Índico e da forma numa defesa furiosa, usando todas as suas
relato de Tomé Lopes, escrivão de uma das como Vasco da Gama entendia a sua mis- forças, e causando grandes danos aos por-
naus que saiu na esquadra de Estêvão da são. De acordo com as descrições a tugueses que tiveram por missão combatê-
Gama, a 1 de Abril de 1502. Essa esquadra esquadra “andava à caça de naus de Meca”, -los. Ao cabo de quatro dias, “depois de tan-
seguiu o caminho já conhecido até ao Cabo ou seja, navios que comerciavam entre o tos combates, fez o almirante pôr fogo
da Boa Esperança, e foi àquela nau, que ardeu com
assaltada por um violento quantas pessoas se achavam
temporal, daqueles que são dentro, com muita crueldade
frequentes naquela região, e sem comiseração alguma”.
durante o Inverno do Os tripulantes da embar-
Hemisfério Sul. Os navios cação de Cananor, que ainda
separaram-se ficando o de estava junto dos portugueses
Tomé Lopes junto com a assistiram a tudo isto e
Julioa (ou Júlia), afastados foram, concerteza, os que le-
dos três restantes, que che- varam a toda a Índia a mais
garam a Quíloa, a tempo de pormenorizada descrição
aí encontrar Vasco da Gama. das intenções portuguesas
Quando saíram desse porto, naquela região.
a situação da esquadra era, A 18 de Outubro os portu-
pois, a seguinte: dos navios gueses estavam em Cananor,
que partiram de Lisboa em onde o rei local veio à fala
Fevereiro, um tinha sido com o Gama, e foi feito um
queimado em Sofala, dois acordo para carregar os
permaneciam desaparecidos navios portugueses de espe-
desde a tempestade no Cabo (tinham-se Mar Vermelho e o Extremo-Oriente, trans- ciarias. Contudo, a oposição muçulmana
perdido quatro, mas dois deles foram ter portando, simultaneamente, os peregrinos era, de facto, muito forte, e os navios aca-
a Quíloa) e era possível contar com uma de Meca. Na verdade, os que queria atacar bam por sair para o mar sem nada, depois
caravela que fora aparelhada de Lisboa, eram aqueles que mantinham relações com de muitas ameaças e protestos de parte a
em peças soltas para serem montadas em o Samorim de Calecut, com quem tinha parte. Partiram para Calecut, numa quarta-
Moçambique (o que não deixa de ser uma havido grandes conflitos nas viagens ante- -feira, dia 25 de Outubro, com esperanças
curiosidade interessante sobre a capaci- riores, e que tinha massacrado a feitoria de paz que se goraram e terminaram com
dade de construção naval da época); da portuguesa colocada no seu território. É mais uma demonstração de força por parte
segunda armada, saída de Lisboa a 1 de avistado um primeiro navio, que não con- dos portugueses: logo à chegada, para que
Abril, já tinha consigo três navios. Em seguem aprisionar, depois um outro - que as negociações decorressem sob pressão,
suma, contava com 16 navios (14 naus e 2 verificam tratar-se de súbditos do rei de foram aprisionados umas dezenas de ma-
caravelas) e aguardava notícias de mais Cananor e que Vasco da Gama decide que labares que se encontravam à pesca em
quatro que ficaram perdidos à passagem seriam libertados quando fosse possível – e, frente da cidade; e, como ponto de partida,
do Cabo da Boa Esperança. Foi com esses a 19 de Setembro, a S. Gabriel avistou um Vasco da Gama exigia a devolução da
navios que saiu nos finais de Julho para o enorme navio que vinha de Meca para “fazenda” que tinha sido roubada a Aires
Malabar, fundeando em Angediva a 20 de Calecut, com 240 homens a bordo, acom- Correia (o feitor que tinha ali ficado e que
Agosto. É aí que vai aparecer o navio do panhados de mulheres e crianças. Alguns tinha sido assassinado durante a estadia de
cronista Tomé Lopes, que conta como se desses homens eram dos mais ricos mer- Cabral). Como a atitude do Samorim teve
perdeu no Cabo, como subiu a costa cadores da cidade inimiga, parecendo-lhe evasivas de vária ordem, todos os cativos
africana na companhia da Julioa, como que com as riquezas que transportavam foram mortos, e a cidade bombardeada
foram até Melinde (onde o rei se lamen- poderia resgatar as suas vidas sem terem de durante várias horas. Seguiu depois para
tou pelo facto do Almirante não o ter visi- combater com os portugueses. O relato que Cochim, onde conseguiu carregar espe-
tado), e como fizeram a travessia do Tomé Lopes nos dá deste acontecimento é ciarias e fazer um tratado com o rei local,
Índico (onde a Julioa voltou a desapare- verdadeiramente dramático, como dramáti- que constituiria a base mais sólida para o
cer). Todos tinham instruções para se co deve ter sido na realidade. Vasco da estabelecimento do poder português na
reunir em frente ao Monte Dely (onde Gama não aceitou nenhuma negociação Índia, durante as primeiras décadas do
Vasco da Gama tinha chegado em 1498) e nem sequer qualquer rendição que lhe século XVI. Em Fevereiro do ano de 1503, a
é para aí que todos se dirigem e onde vão desse cativos. Retirou do navio as 17 crian- esquadra faz-se ao mar de regresso a
ter os restantes navios, com excepção da ças que baptizou e tencionava converter em Lisboa.
nau Santa Cruz, que perdeu a monção e frades Jerónimos, e incendiou o navio com
ficou na costa africana até ao ano todos os restantes. Naturalmente que, em J. Semedo de Matos
seguinte. situação tão desesperada como a que se CFR FZ
16 ABRIL 2002 • REVISTA DA ARMADA