Page 42 - Revista da Armada
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PONTO AO MEIO-DIA






                       O Espírito de Defesa





                política de defesa nacional não  Contudo, neste juízo também não se  ataque económico, a perturbação social
                pode ser reduzida a aspectos de  pode deixar de ter em conta a divisão  ou a acção política clandestina em ter-
          A ordem material. Deve considerar  da opinião pública portuguesa relati-  ritório nacional. Por outro lado, para
          também os factores psicológicos e  vamente às grandes questões de políti-  Portugal, a defesa militar da liberdade
          morais que conferem expressão à von-  ca externa. Quer se trate da NATO, da  e da independência não pode ser con-
          tade colectiva dos cidadãos para se  construção europeia ou da atitude re-  cebida apenas em função das nossas
          comprometerem na actividade militar  lativamente a África, os pontos de  forças armadas. Encontra-se ne-
          do Estado, quaisquer que sejam as for-  vista divergem e as linhas de clivagem  cessariamente ligada à participação
          mas perspectivadas de ameaça. De nada  passam pelo seio dos partidos políti-  responsável num sistema de segurança
          servirá adquirir e acumular armamen-  cos, que possuem diferentes con-  supranacional, quaisquer que sejam as
          tos, se aqueles que poderão ser chama-  cepções do espírito de defesa, em vir-  estruturas que o materializem. Acresce
          dos a utilizá-los se retraírem no cumpri-  tude da sua expressão e do seu conteú-  que a velha noção de fronteira, tão pro-
          mento da sua missão, por não disporem  do dependerem do sistema de referên-  fundamente enraizada no espírito e no
          de um forte espírito de defesa.   cias ideológicas que cada um adopta.  coração dos portugueses, perdeu uma
            O envolvimento deliberado num   Pode pensar-se que, em caso de perigo  parte substantiva do seu carácter rígi-
          conflito militar lança um desafio supre-  concreto e claramente reconhecido, se  do, absoluto e quase sagrado. Por tudo
          mo à vontade de qualquer entidade  restabelecerá um consenso nacional  isto é difícil tirar pleno partido dos fac-
          política: o risco da morte valerá a pena  suficientemente alargado. A nossa  tores morais e psicológicos ligados à
          ser corrido por território, recursos ou  tradição histórica só confirma essa  defesa do território para alimentar um
          outros interesses nacionais que estejam  possibilidade perante ameaças de  adequado espírito de defesa.
          ameaçados? É nestas circunstâncias  enorme gravidade e depois de consu-  Perante esta situação será altamente
          que o velho axioma da “liberdade ou  madas. Noutras situações as divergên-  vantajoso para a afirmação interna-
          morte” assume o seu sentido literal,  cias persistem. O que é considerado  cional do país, que o programa de go-
          concreto e verdadeiramente trágico.  por uns como um aliado privilegiado,  verno do partido que vencer as eleições
          Por isso, para que a decisão política  é encarado por outros como um agres-  legislativas a 17 de Março, integre
          não penda no sentido da capitulação, o  sor potencial. As participações nas  medidas que permitam desencadear
          emprego das Forças Armadas deve ser  operações de paz têm suscitado sem-  uma acção educativa e informativa de
          apoiado por uma inabalável determi-  pre debates difíceis. Futuramente, a  carácter inovador, que eleve o nível de
          nação colectiva. Porém, como é que  legitimidade destas intervenções  compreensão e de aceitação que os por-
          uma entidade política alcança a cora-  poderá até ser contestada e contraria-  tugueses têm da legitimidade do sacri-
          gem necessária para assumir conscien-  da. Por isso, mobilizar as energias  fício supremo a que se poderão ter de
          temente o risco da guerra?        nacionais em função de um qualquer  sujeitar. Tal abnegação implica que
            Em 1961 os analistas políticos e mi-  perigo distante, quando o adversário é  sejam claramente definidos e divulga-
          litares do Ocidente e do Leste revela-  susceptível de mudar de rosto e de  dos os valores fundamentais pelos
          ram grande surpresa sobre a unanimi-  designação segundo as nossas escolhas  quais lhes será exigido que combatam.
          dade da vontade de luta demonstrada  ideológicas ou tendências políticas,  Sem dúvida que a adesão persistente
          pelos portugueses na defesa da sobera-  constitui uma tarefa penosa para qual-  ao sentimento de patriotismo consti-
          nia nacional nos territórios ultramari-  quer governo, na ausência de um ade-  tuirá sempre, para uma velha nação
          nos. Alguns deles estavam convenci-  quado espírito de defesa.       como Portugal, um poderoso factor
          dos que as fracturas políticas e ideoló-  No estado actual das relações inter-  psicológico e moral de resistência e
          gicas no seio das nossas elites e entre  nacionais e para a opinião pública por-  coesão. Todavia, convirá debruçarmo-
          estas e o povo,  não permitiriam ao  tuguesa, a noção de ameaça perdeu  -nos sobre as condições actuais da sua
          país resistir militarmente para além de  parte significativa da sua acuidade  interiorização, expressão e manifes-
          poucos meses. Enganaram-se redonda-  tradicional. O fim da guerra fria esba-  tação, muito distintas das verificadas
          mente porque a doutrina do regime  teu a perspectiva de uma agressão  no passado. Importa igualmente reflec-
          havia inculcado sistematicamente nos  armada visando directamente e no  tir sobre as acções que permitirão man-
          portugueses, durante mais de 30 anos,  curto prazo o território nacional. A  ter a adesão de todos os portugueses às
          o valor mais importante do espírito de  NATO e a EU fizeram desaparecer o  formas de vida colectiva que se enten-
          defesa: o patriotismo. Por isso, os  velho fantasma do invasor castelhano.  da defender. É pois no contexto da
          ataques dos movimentos africanos  Por isso, a ameaça não pode ser perce-  educação, da informação e do civismo
          independentistas representaram para a  bida nos termos clássicos: uma nação  que se coloca hoje, em Portugal, o pro-
          maioria dos nossos compatriotas uma  militarmente poderosa que procura  blema do desenvolvimento do espírito
          ameaça clara e imediatamente percep-  impor as suas ambições hegemónicas.  de defesa.
          tível.                            As formas concebíveis de agressão ao
            As ameaças actualmente existentes  país são hoje múltiplas, variando entre         António Silva Ribeiro
          não suscitam convicções semelhantes.  os aspectos virtuais da luta armada, o                      CFR



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