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PONTO AO MEIO-DIA
O Espírito de Defesa
política de defesa nacional não Contudo, neste juízo também não se ataque económico, a perturbação social
pode ser reduzida a aspectos de pode deixar de ter em conta a divisão ou a acção política clandestina em ter-
A ordem material. Deve considerar da opinião pública portuguesa relati- ritório nacional. Por outro lado, para
também os factores psicológicos e vamente às grandes questões de políti- Portugal, a defesa militar da liberdade
morais que conferem expressão à von- ca externa. Quer se trate da NATO, da e da independência não pode ser con-
tade colectiva dos cidadãos para se construção europeia ou da atitude re- cebida apenas em função das nossas
comprometerem na actividade militar lativamente a África, os pontos de forças armadas. Encontra-se ne-
do Estado, quaisquer que sejam as for- vista divergem e as linhas de clivagem cessariamente ligada à participação
mas perspectivadas de ameaça. De nada passam pelo seio dos partidos políti- responsável num sistema de segurança
servirá adquirir e acumular armamen- cos, que possuem diferentes con- supranacional, quaisquer que sejam as
tos, se aqueles que poderão ser chama- cepções do espírito de defesa, em vir- estruturas que o materializem. Acresce
dos a utilizá-los se retraírem no cumpri- tude da sua expressão e do seu conteú- que a velha noção de fronteira, tão pro-
mento da sua missão, por não disporem do dependerem do sistema de referên- fundamente enraizada no espírito e no
de um forte espírito de defesa. cias ideológicas que cada um adopta. coração dos portugueses, perdeu uma
O envolvimento deliberado num Pode pensar-se que, em caso de perigo parte substantiva do seu carácter rígi-
conflito militar lança um desafio supre- concreto e claramente reconhecido, se do, absoluto e quase sagrado. Por tudo
mo à vontade de qualquer entidade restabelecerá um consenso nacional isto é difícil tirar pleno partido dos fac-
política: o risco da morte valerá a pena suficientemente alargado. A nossa tores morais e psicológicos ligados à
ser corrido por território, recursos ou tradição histórica só confirma essa defesa do território para alimentar um
outros interesses nacionais que estejam possibilidade perante ameaças de adequado espírito de defesa.
ameaçados? É nestas circunstâncias enorme gravidade e depois de consu- Perante esta situação será altamente
que o velho axioma da “liberdade ou madas. Noutras situações as divergên- vantajoso para a afirmação interna-
morte” assume o seu sentido literal, cias persistem. O que é considerado cional do país, que o programa de go-
concreto e verdadeiramente trágico. por uns como um aliado privilegiado, verno do partido que vencer as eleições
Por isso, para que a decisão política é encarado por outros como um agres- legislativas a 17 de Março, integre
não penda no sentido da capitulação, o sor potencial. As participações nas medidas que permitam desencadear
emprego das Forças Armadas deve ser operações de paz têm suscitado sem- uma acção educativa e informativa de
apoiado por uma inabalável determi- pre debates difíceis. Futuramente, a carácter inovador, que eleve o nível de
nação colectiva. Porém, como é que legitimidade destas intervenções compreensão e de aceitação que os por-
uma entidade política alcança a cora- poderá até ser contestada e contraria- tugueses têm da legitimidade do sacri-
gem necessária para assumir conscien- da. Por isso, mobilizar as energias fício supremo a que se poderão ter de
temente o risco da guerra? nacionais em função de um qualquer sujeitar. Tal abnegação implica que
Em 1961 os analistas políticos e mi- perigo distante, quando o adversário é sejam claramente definidos e divulga-
litares do Ocidente e do Leste revela- susceptível de mudar de rosto e de dos os valores fundamentais pelos
ram grande surpresa sobre a unanimi- designação segundo as nossas escolhas quais lhes será exigido que combatam.
dade da vontade de luta demonstrada ideológicas ou tendências políticas, Sem dúvida que a adesão persistente
pelos portugueses na defesa da sobera- constitui uma tarefa penosa para qual- ao sentimento de patriotismo consti-
nia nacional nos territórios ultramari- quer governo, na ausência de um ade- tuirá sempre, para uma velha nação
nos. Alguns deles estavam convenci- quado espírito de defesa. como Portugal, um poderoso factor
dos que as fracturas políticas e ideoló- No estado actual das relações inter- psicológico e moral de resistência e
gicas no seio das nossas elites e entre nacionais e para a opinião pública por- coesão. Todavia, convirá debruçarmo-
estas e o povo, não permitiriam ao tuguesa, a noção de ameaça perdeu -nos sobre as condições actuais da sua
país resistir militarmente para além de parte significativa da sua acuidade interiorização, expressão e manifes-
poucos meses. Enganaram-se redonda- tradicional. O fim da guerra fria esba- tação, muito distintas das verificadas
mente porque a doutrina do regime teu a perspectiva de uma agressão no passado. Importa igualmente reflec-
havia inculcado sistematicamente nos armada visando directamente e no tir sobre as acções que permitirão man-
portugueses, durante mais de 30 anos, curto prazo o território nacional. A ter a adesão de todos os portugueses às
o valor mais importante do espírito de NATO e a EU fizeram desaparecer o formas de vida colectiva que se enten-
defesa: o patriotismo. Por isso, os velho fantasma do invasor castelhano. da defender. É pois no contexto da
ataques dos movimentos africanos Por isso, a ameaça não pode ser perce- educação, da informação e do civismo
independentistas representaram para a bida nos termos clássicos: uma nação que se coloca hoje, em Portugal, o pro-
maioria dos nossos compatriotas uma militarmente poderosa que procura blema do desenvolvimento do espírito
ameaça clara e imediatamente percep- impor as suas ambições hegemónicas. de defesa.
tível. As formas concebíveis de agressão ao
As ameaças actualmente existentes país são hoje múltiplas, variando entre António Silva Ribeiro
não suscitam convicções semelhantes. os aspectos virtuais da luta armada, o CFR
4 FEVEREIRO 2002 • REVISTA DA ARMADA