Page 89 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (23)



                        O ouro de Sofala
                        O ouro de Sofala







               iz-nos João de Barros que os                                      Os relatos do que aí se passou, têm
               primeiros quinze navios do Gama                                 variações consoante a fonte que os deixou
         Dsaíram de Lisboa e navegaram em                                      registados, mas são unânimes na des-
         direcção ao Cabo Verde, vindo a fundear                               crição da demonstração de força que o
         “onde os nossos chamam porto Dale. No                                 Almirante quis transmitir ao poder local.
         qual esteve seis dias fazendo sua aguada, e                           Uma testemunha anónima diz-nos que o
         alguma pescaria: e ai veio ter com ele uma                            Sultão de Quíloa, ao ver tamanha es-
         caravela que vinha da mina, de que era                                quadra e sabendo que o Gama com ele se
         capitão Fernando de Montaroyo, o qual                                 queria encontrar, mandou dizer que esta-
         trazia duzentos e cinquenta marcos de                                 va doente e que não o poderia fazer
         ouro todo em manilhas e jóias que os                                  naquela altura. Entretanto veio à fala com
         negros costumam trazer. O Almirante,                                  os navios o degredado Luís de Moura,
         porque levava consigo Gaspar da Índia [o                              que ali tinha ficado da viagem de Cabral,
         cativo de Angediva, da primeira viagem,                               entregando uma carta de João da Nova e
         agora baptizado com um nome cristão] e                                fazendo queixas do soberano local que
         assim outros embaixadores delrey de                                   pouca consideração parecia ter com os
         Cananor e delrey de Cochim, quis-lhes dar                             cristãos. Vasco da Gama mandou invadir
         mostra dele, não tanto pela quantidade,                               o palácio do Sultão e levou-o à força, a
         quanto porque o vissem assim, como                                    bordo de uma embarcação, onde lhe
         vinha por lavrar, e soubessem ser elrey                               impôs as suas regras. “Não queria ver-
         D. Manuel senhor da mina dele.” O efeito                              -me, e comportava-se para comigo de
         desta acção – segundo o cronista – foi bas-                           uma maneira muito descortês...” – diz-
         tante significativo: “A vista de tal outro  As Armadas de Vicente Sodré e Estêvão da Gama que  -nos o Almirante. De forma que foi buscá-
         tiveram estes Índios por tão grande conta  integraram a grande Armada de Vasco da Gama em 1502  lo “de uma maneira ainda mais des-
         que vieram descobrir a D. Vasco da Gama,  - Livro das Armadas.        cortês”. São palavras com um significado
         uma prática que em Lisboa tiveram com                                 precioso para entender o espírito com que
         eles, uns venezianos, em que lhe fizeram  esta atitude surgiu tão cedo quanto João de  se avançou para a Índia em 1502: em
         crer que as cousas deste reino de Portugal  Barros o está a fazer crer. A rota do Cabo  primeiro lugar, já tinha sido entendida a
         eram bem diferentes do que eles viam  da Boa Esperança, dominada pelos por-  importância da região de Sofala (como
         naquela soma de ouro” – e acrescenta mais  tugueses, rivalizava com os interesses de  fonte do ouro) e dos potentados que lhe
         à frente, relatando o mesmo facto – E como  Veneza (enquanto poderia favorecer  estavam anexos; mas, sobretudo, havia
         este negócio do comércio das especiarias  Génova, Florença, Pisa e Luca), mas nesta  uma vontade intransigente de assustar e
         era uma grande parte de que o estado de  data – e com o avanço que os turcos faziam  mostrar que a alternativa ao poder por-
         Veneza se sustentava, vendo estes embai-  no Mediterrâneo Oriental – não creio que  tuguês era a guerra cruel. Devo dizer que
         xadores da Índia em Lisboa [...] alguns  as conspirações em Lisboa assumissem o  os orientais não estavam habituados a
         familiares seus, mostrando curiosidade de  nível que Barros sugere.   esta forma de “diplomacia” e raramente
         querer saber as cousas da Índia, foram  A 6 de Março, saiu a esquadra da ilha  foi possível obter a sua colaboração desta
         falar com eles [...] assim os induziram, que  de Palma (hoje Gorée, perto do Cabo  forma. O poder da força vence, mas não
         lhes fizeram crer que o embaixador de  Verde) só voltando a avistar terra, no  convence, de forma que o mesmo sobera-
         Veneza era vindo a este reino, a dar  Oceano Índico, junto ao cabo das Cor-  no que hoje aceita a submissão, jurando
         adjutório de dinheiro e mercadorias para  rentes, um pouco a sul do parcel de  fidelidade até à morte, amanhã conjura a
         se fazer aquela armada, em que eles havi-  Sofala. Aqui, Vasco da Gama decidiu  mais pérfida traição, ignorando tudo o
         am de tornar para a Índia. Porque este  enviar as “naus grossas” com Vicente  que jurou. Ibrahim, Sultão de Quíloa,
         reino de Portugal era muito pequeno e  Sodré para Moçambique e efectuar ele  aceitou ser “vassalo” de el-Rei D. Manuel,
         pobre, e não se atrevia a tamanho negócio  próprio um reconhecimento à barra e ao  pagando todos os anos 1500 miticais (1).
         como era o tracto da especiaria, e a senho-  rio, onde se suspeitava ser a origem de  Pensavam os portugueses daquele tempo
         ria de –Veneza era  a maior potência de  muito ouro que circulava no Índico. Não  que a vassalagem era uma relação univer-
         toda a cristandade, a qual senhoria, desde  conseguiu resgatar muita quantidade  salmente aceite, que obrigava Ibrahim,
         que houve tracto no mundo sempre nego-  desse metal, mas deve ter sabido do  como qualquer outro cavaleiro da casa
         ciara com os mouros do Cairo que traziam  poder que o rei de Quíloa tinha sobre esse  real. Na verdade não era bem assim e os
         esta especiaria pelo Mar Roxo, do reino de  comércio porque decidiu que o iria atacar  anos seguintes iriam mostrar que muitos
         Calecute e de toda a costa do Malabar,  na sua própria morada, com todas as  outros mundos havia para além da
         donde eles eram naturais”.         forças que consigo levava. Passou por  Europa Cristã.
           São as palavras que mostram a posição  Moçambique, onde estava quase montada
         de Veneza acerca das expedições portu-  a caravela que fora preparada de Lisboa,          J. Semedo de Matos
         guesas ao oriente, tomando consciência do  deixou uma carta para Estêvão da Gama e                CFR FZ
         perigo que elas representavam para o seu  seguiu para Quíloa com todos os navios  Notas
         comércio no Mediterrâneo. Mas não sei se  que conseguiu reunir.       (1) Um mitical = 4,25g de ouro.
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2002  15
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