Page 85 - Revista da Armada
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cordite cujas capacidades militares
eram reconhecidamente extraor-
dinárias – era uma coisa incompreen-
sível, para a mentalidade do princí-
pio do século XX, que olhava os pro-
gressos científicos como uma ban-
deira de esperança. Para além do
mais, era absurdo que os marinhei-
ros viessem a soçobrar vítimas das
suas próprias armas. Branca de
Gonta Colaço exprime muito bem o
sentido do horror suscitado pelas cir-
cunstâncias de um acidente com
estas dimensões num momento de
paz:
Enfim... n’um temporal que o
mundo avassalasse
Ou defendendo a pátria, n’uma
lucta estóica,
Talvez que aquelle horror nos não
horrorizasse
E até nos attraisse aquella morte
heróica...
Mas n’um dia de paz, e o sol bri-
lhando tanto!
A humanidade e o mar em tão feliz
bonança!
Que tristeza, meu Deus! – que
Lucilia Simões, actriz do D. Amélia, participante na récita de amargo desencanto Teatro D. Amélia - hoje São Luis - onde teve lugar a récita de soli-
16 de Março de 1906 e autora de uma das mensagens. dariedade com as famílias das vitimas do “Aquidaban”
Ver apagar-se assim a luz de tanta
expresso por muitos dos autores. Se o esperança! outros intelectuais desse tempo, quase
desastre do “Aquidaban” tivesse ocorri- Não é possível analisar aqui todas as sempre de cariz republicano. De um
do na sequência de um temporal, ou de mensagens e os seus autores. Seria, aliás, modo geral todos eles tinham a ideia de
uma batalha naval, o choque não teria desonesto que se fizessem juízos críticos que a Europa é um mundo decadente
sido tão violento Seguramente que ne- elaborados sobre textos escritos de que se esgotaria por si própria - numa
nhum afundamento no mar com mais de improviso, num momento de conster- visão darwinista da sociedade – caso não
duzentas vítimas nunca seria acolhido nação. Em todos os casos são palavras conseguisse uma regeneração, para que
com normalidade, mas houve aqui algo imediatas, nuas e sinceras. Mas não reclamavam a acção da ciência, cujos
de mais brutal e mais terrível. O navio deixarei de chamar a atenção para as resultados práticos eram vistos com
poderoso, como uma verdadeira for- Gomes Leal: enorme fascínio. Mas o Brasil não tinha
taleza flutuante (o “Aquidaban” já tinha “ [...] nenhum dos males do “Velho Con-
estado em Lisboa por duas vezes), afun- Se eu – que tenho a honra de diver- tinente” e surgia cheio de vida, com tudo
dando-se num ápice por causa de uma gir da opinião da maioria dos homens para construir e com os modelos claros e
explosão da sua própria pólvora, era do meu século – devo especificar o definidos (julgavam eles), para cuja rea-
algo que deixava toda a gente prostrada. Brasil com um afecto particular, tal lização bastava o trabalho e dedicação
A ideia de que a causa do acidente esta- afecto não terá nunca por móvel unica- dos seus cidadãos. E a recente implan-
va na própria pólvora do navio - a nova mente as afinidades de raça e de tação da república reforçava-lhes esta
sangue, ou a fecundidade e a pompa convicção. O colosso da América do Sul,
do seu solo, da sua fauna, ou da sua que falava português e que todos
flora; mas sim por[que] ali subsiste gostavam de ver como o filho dilecto da
uma raça nova, onde medram ideaes nação lusitana, preenchia plenamente
novos, e se constituiu uma pátria todas as condições para dar vida ao
digna de lá morarem almas, como a do imaginário da geração que vivera a
austero estóico romano – Patria ubi humilhação do Ultimatum, que se mani-
justitia.” festara nas ruas durante alguns anos,
A personalidade de Gomes Leal é co- que tinha feito crescer o republicanismo
nhecida e sabe-se o preço que pagou por mais radical, mas que vira arrefecer todo
ter sido um homem que divergiu “da esse ímpeto, desfazendo-lhe os sonhos
opinião da maioria dos homens do seu até se acomodar com a lapidar conclusão
século”. Mas a forma como se refere ao de que na Europa tudo era velho, tudo
Brasil não é diferente da que assume a era decadente e não havia solução para
intelectualidade do seu tempo. As nada.
afinidades de raça e sangue são – como Assim foram as Lágrimas Portuguesas
já dissemos – um argumento recorrente, de 1906, com um pouco da sensibilidade
mas Gomes Leal realça que o seu afecto dos artistas desse tempo.
não vem daí. A sua simpatia vai para o
carácter da “nação nova”, e eu saliento
que essa atitude foi a que mereceu a sim- J. Semedo de Matos
O poeta Gomes Leal. patia dos artistas, poetas, escritores e CFR FZ
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2002 11