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estivesse confiado, embora de forma irre- sistemático da Matemática em Portugal da luz solar nos vapores e poeiras suspen-
gular e não regulamentada, a alguém de- (10). Mas, mais importante do que isso, sos no ar e na altura a que sobem esses
signado como “Piloto-mor do Reino”, à procurou dar corpo a uma náutica científi- vapores e poeiras) para um dado lugar da
semelhança com o que sucedia na vizinha ca até então quase exclusivamente basea- Terra. O livro foi aclamado em toda a
Espanha (o cargo de Piloto Mayor foi pela da nos dados empíricos dos navegadores Europa, merecendo o aplauso de person-
primeira vez atribuído a Américo do século XV. alidades como Tycho Brahe e Clavius
Vespúcio, em 1508, provavel- (que foi em Coimbra aluno do
mente inspirado na realidade grande matemático portu-
portuguesa). Como, porém, os guês).
arquivos dos Armazéns da É justamente nesta obra que
Guiné e da Índia foram surge aquele que é considera-
destruídos durante o terramoto do o grande invento do
de 1755, não existem certezas Mestre: o nónio (derivado da
quanto a este facto. latinização do apelido do
Chamado em 1568 pelo rei Matemático – Nonius). Mercê
D. Sebastião (de quem fora da sua incansável procura de
mestre) a reformar os pesos e precisão e rigor, Nunes con-
as medidas do Reino, seria cebe na “proposição III” da
uma das personalidades convi- segunda parte, um acessório
dadas pelo Papa Gregório XIII, que, adaptado à linha gradua-
em 1577, para se pronunciar da do astrolábio ou do qua-
sobre o projecto de reforma do drante, permitiria medir as
Calendário (levada a cabo ape- alturas dos astros até à fracção
nas em 1582), o que atesta de de grau. Consistia de 45 arcos
forma inequívoca o seu prestí- concêntricos, sendo o exterior
gio internacional. dividido exactamente em 90
Tendo fixado residência em graus e os restantes, para o
Coimbra dois anos antes, Pedro interior, sucessivamente, em
Nunes viria a falecer em 1578, 89, 88, 87... até ao último, que
apenas uma semana depois da seria dividido em 46 partes
hecatombe de Alcácer-Quibir. iguais. Quando o marcador
Tal como Camões, morria com não “cortava” exactamente
a Pátria um dos seus maiores uma das marcas de grau da
vultos (8). escala exterior, passaria,
decerto, por uma das divisões
A OBRA das escalas interiores, sendo a
fracção de grau calculada a
Um dos aspectos que mais partir daí. É, no entanto, pouco
se evidenciam na obra de provável que Nunes tenha
Pedro Nunes é a sua faceta de concebido fisicamente tal
pedagogo, pois além de ter instrumento. A ideia seria
sido mestre de três gerações de Fac-símile da capa da 1ª edição do Tratado da Sphera (1537). posta em prática, primeiro por
príncipes e de ter formado o Clavius, com o auxílio de um
espírito de alguns dos mais eminentes cére- Como anteriormente referido, a obra compasso para comparar uma escala
bros do seu tempo (como D. João de científica de Pedro Nunes divide-se em duas móvel com a escala fixa e, por fim, por
Castro e o padre jesuíta alemão Cristoph partes essenciais: a tradução e melhora- Pierre Vernier, que ligaria a escala auxiliar
Clavius (9), de que falaremos adiante), foi, mento de obras anteriores – caso do Tratado à alidade móvel. Há, assim, quem atribua
indiscutivelmente, o introdutor do ensino da Sphera – e o desenvolvimento de teorias ao acessório a designação de Clavius (uti-
próprias, como no De Crepusculis. lizado na Alemanha) ou de Vernier
Publicado em 1542, o De (França e Países baixos), contudo, quando
Crepusculis, considerado por Vernier trouxe o seu aparelho à luz do dia,
muitos a obra-prima de Pedro estava generalizada em França a desig-
Nunes, procura dar resposta a nação de Non, sem dúvida a mais justa.
uma das dúvidas do Príncipe Além do Nónio, Pedro Nunes conce-
D. Henrique (11): a duração dos beu, ainda, um “anel náutico”, mais leve
crepúsculos em “diferentes cli- do que o astrolábio (como se baseava na
mas” (latitudes). Para obter a projecção da luz solar através de um
solução do problema, que apre- furo, não possuía alidade nem corpo cen-
sentou em seis casos-tipo, Nunes tral) e com uma escala de apenas 45
começou por calcular a duração graus que lhe dava maior precisão, e dois
do dia e da noite em função da “instrumentos de sombras”, um para
latitude do lugar e da altura do determinar a declinação magnética do
ano, que condiciona a posição lugar (testado com sucesso por D. João
do Sol na Eclíptica. Recorrendo a de Castro) e outro para medir a altura
processos geométricos, conforme solar, à semelhança de um relógio de Sol
era seu gosto, determinou a (este com resultados práticos menos ri-
duração da aurora e do crepús- gorosos).
As linhas de rumo vistas pelo artista holandês Mauritius Escher culo vespertino (fenómeno com- Outra grande inovação científica trazida
(1898-1972). plexo que depende da reflexão por Pedro Nunes foi o conceito de “linha
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2002 17