Page 195 - Revista da Armada

fundamente embebida na lição expansão. Da leitura do escrito
de Cláudio Ptolemeu, geó grafo verifica-se existirem heranças das
alexandrino, que defendia um crónicas medievais, evidentes na
globo em que seria a terra a ro- sustentação duma certa mentali-
dear a água, e não o contrário: dade conquistadora aliada a uma
“[...] pelo qual concrudo que o mar escrita panegírica.
oceano não é outra cousa senão mui- O manuscrito original do Esme-
to grande alagoa metida dentro na raldo perdeu-se, o que hoje existe
concavidade da terra, e a mesma ter- são duas cópias relativamente re-
ra e o mar, ambos juntamente, fazem centes da obra, que ficaram iné-
ua redondeza[...]”.(11) ditas até meados do século XIX.
Afinal o que está no seio da A cópia mais antiga, existente na
discussão renascentista, e o que Biblioteca Municipal de Évora, é
sempre esteve em jogo ao lon- datada da primeira metade do sé-
go destes atribulados séculos(XV- culo XVIII; a outra mais moderna
-XVI) de profundas mudanças é da segunda metade do mesmo
mentais, não é mais nem me- século e encontra-se na Biblioteca
nos do que a visão do Mundo, Nacional de Lisboa.
a sua leitura e interpretação. Isso Terá o texto ficado incomple-
se depreende do discurso ínsito to? A controvérsia tem motivado
no Esmeraldo: “Escrever o sito do Carta de 1558 mostrando a costa do Brasil. acaloradas discussões. Pacheco
orbe com a grandeza de toda a terra Prereira pretendia conceber uma
e do mar, as ilhas, as cidades, as fortalezas, animais, para muitos dos problemas enumerados. obra dividida em cinco livros-primeiro, segundo
com tôdalas outras cousas que nele são, tanto é lon- Em Abril de 1503 Duarte Pacheco Pereira e terceiro abordando as expedições/explorações
ga como defícil matéria, e de elegância não capaz, e a embarca rumo ao Índico, integrado numa es- no tempo do Infante D. Henrique, D. Afonso V
ordem dela assaz entrincada; a qual, pola cantidade quadra capitaneada por Afonso de Albuquer- e D. João II, respectivamente; enquanto o quarto
de tamanho corpo, impossível é ser particularmente que. Passado pouco tempo de desembarcar na e o quinto ocupar-se-iam dos acontecimentos
sabida, mas pola admiração de tão excilente cousa Índia, em Janeiro de 1504, é nomeado para as- no governo de D. Manuel I. Ora, as duas cópias
muito digna de ser escrita e praticada;[...]”(12) segurar a defesa de Cochim contra o rajá de que até nós chegaram terminam inexplicavel-
Por esta altura, entre o final do século XV e o Calecute, com parcos meios humanos e ma- mente na quarta parte. A Professora Suzanne
princípio do Século XVI, quatro grandes mode- teriais, situação que não o impediu de ter um Daveau (15), procurando uma explicação para
los geográficos arrumam as ideias da elite culta papel decisivo e eficaz, na defesa dos interes- o sucedido, defende que, ao contrário do que
acerca da forma do Globo Terrestre, que resu- ses portugueses no Malabar, alcançando o pri- tem sido veiculado, a redacção do Esmeraldo não
midamente podemos descrevê-los do seguinte meiro grande feito militar dos portugueses em foi abruptamente interrompida. Esta geógrafa
modo: o modelo “Homérico” – a terra habitada terras asiáticas.(14) De regresso a Lisboa, no pensa que Duarte Pacheco veio a acabar, por
(a oikoumene) está no centro de um disco plano, início do Verão de 1505, é aclamado como um inteiro, o seu trabalho. É convicção, daquela
rodeado a toda a volta pelas águas; o “Aristo- herói, facto que sobressairá mais tarde nos re- erudita, que se perdeu, em determinada altu-
télico” – complexa ordem dos elementos terra, latos dos cronistas. ra, a parte final do códice, aludindo que igual
água, ar, fogo, num Mundo finito e ordenado, É, sensivelmente, nesse ano de 1505 que come- sorte tiveram o Tratado da Esfera atribuído a
onde cada elemento tinha o seu lugar; o “Crate- ça a redigir, com o patrocínio real a sua já citada, D. João de Castro e o Livro das Fortalezas de
siano” – numa esfera coberta de água represen- notável e única, obra conhecida: Esmeraldo de Duarte de Armas. Argumentação que pode ser
tavam-se quatro massas de terra separadas entre Situ Orbis. No dizer do próprio autor, no pró- válida, visto também se ter perdido irremedia-
si por uma vasta extensão de oceano; o modelo logo à 1ª parte, pretendia ser um livro de cosmo- velmente a esplêndida ilustração iconográfica
“Ptolemaico” – propunha um globo definido grafia e marinharia. Ultrapassando na verdade (gravuras, desenhos, mapas) que acompanha-
por uma grelha de paralelos e meridianos, no esse âmbito, o livro, onde predominam os da- va o texto original.
qual a terra rodeava a água.(13) dos autobiográficos e uma avultada experiência No Esmeraldo de Situ Orbis perpassa a emer-
A imagem ptolemaica do globo esclare- pessoal no campo das navegações portuguesas, gência de uma nova época, uma nova idade
cia algumas controversas questões postas é um relato das suas viagens, um roteiro náuti- onde se enfrentam os antigos e os modernos
pe la física aristotélica (e que se arrastavam co, uma memória redigida por um navegador saberes. Essa confrontação com base num
nos centros eruditos: universidades, escolas e homem de armas ao serviço de um Estado em conceito de experiência, onde ainda não cabe
e mosteiros). As querelas a experimentação ou a ob-
su cediam-se, com o intuito servação sistemática, mas
de discutir que lugar ocu- sim o conhecimento práti-
pavam os elementos (água, co e empírico, não deixa de
terra, ar, fogo); como é que a ser condição propícia para o
água não cobria toda a ter- colapso de algumas ideias e
ra; como é que se explica- teorias erróneas relativas à
va a deslocação do centro geografia e ao mundo na-
de gravidade da terra; que tural, que circulavam nos
estrutura tinha o Cosmos; manuais dos autores clás-
o que diferenciava “Cosmo- sicos e medievais. Não se
grafia” de “Geografia”. As trata ainda de uma verda-
ideias do alexandrino, quan- deira ruptura frente aos
do se tornaram conheci- paradigmas da tradição,
das no Ocidente durante contudo é uma etapa fun-
o Renascimento, revolucio- damental para estabelecer
naram por completo a ima- a dúvida e a descrença num
gem que se tinha do Mun- edifício em processo de de-
do, propondo uma solução Duarte Pacheco entre os negociadores do Tratado de Tordesilhas. sarticulação.
REVISTA DA ARMADA U JUNHO 2003 13